Quedas, queimaduras, intoxicações, afogamentos, choques eléctricos e engasgamentos, são apenas alguns dos muitos perigos que espreitam as crianças dentro de casa, muitas vezes ignorados pelos adultos que as rodeiam. Os números revelam que no ano de 2024, os acidentes domésticos corresponderam a 9% dos atendimentos gerais na pediatria no Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), e entre 10% a 12% dos internamentos. Durante os meses de férias escolares, essa percentagem sobe para 12% e pode chegar até 13%.
A directora dos serviços de urgência de pediatria do HUAN, a pediatra Sandra Lobo, explica que na maioria das vezes os acidentes são considerados ligeiros, como quedas, pequenos ferimentos ou fraturas ortopédicas. Situações que ocorrem quando as crianças correm, pulam ou andam de bicicleta, dentro ou nos arredores da casa, enquadram-se nos chamados acidentes domésticos.
"É importante lembrar que acidentes domésticos são todos aqueles que acontecem no ambiente onde a criança mora. A maioria está relacionada com quedas, pequenos ferimentos, situações ortopédicas, fraturas ligeiras. São acidentes comuns, muitas vezes causados por actividades aparentemente inofensivas."
Contudo, adverte que também existem casos graves com risco de vida. Na sua experiência, muitas situações decorrem da ausência de supervisão e de situações que poderiam ser evitados, como a da existência de escadas sem corrimão ou lages desprotegidas nas moradias.
"As crianças acabam por subir nesses espaços. As pessoas pensam que, por a criança ter cinco, seis ou sete anos, não há problema. Mas temos de lembrar que as crianças são curiosas. Qualquer coisa que chame a atenção pode distraí-las e levá-las ao perigo. A falta de conhecimento sobre as consequências de determinadas acções também contribui para a gravidade de alguns acidentes."
Vigilância contínua
Para Sandra Lobo, a vigilância contínua é essencial. Cada fase do desenvolvimento representa riscos distintos. Desde o momento em que o bebé começa a sentar e a pegar objectos com as mãos, passando pelo engatinhar, a curiosidade torna a criança vulnerável a vários acidentes. A médica sublinha que muitas vezes essas crianças colocam a mão na tomada, ingerem objectos pequenos, ou têm acesso a produtos tóxicos.
"As crianças, ao engatinhar e arrastar-se, já são capazes de alcançar produtos que estão ao alcance das mãos. Brinquedos de irmãos mais velhos, berlinde, objectos de casa, produtos para afastar insectos. Se tivermos um bebé em casa, estes produtos não podem estar expostos. E, se estiverem, o bebé deve estar 100% monitorado."
As queimaduras são também motivo frequente de internamento. Segundo a pediatra, há casos de crianças que puxam os cabos das panelas, com óleo quente ou água quente, entornam chás das mesas ou são escaldadas durante o banho, muitas vezes devido à prática de aquecer primeiro a água quente e deixar a criança sozinha por instantes, para poder prepara a água para o banho: é suficiente para causar um acidente.
"Temos de estar muito atentos no banho, tanto por causa de afogamentos como de queimaduras. Há quem coloque água quente na banheira e vá buscar a água fria, deixando a criança sozinha. Mas isso é suficiente para causar um acidente grave."
Outro aspecto cultural relevante é a prática de deixar crianças pequenas ao cuidado dos irmãos mais velhos. "Muitas vezes, quando questionamos, não havia nenhum adulto por perto. Ouvimos que a criança estava com um irmão de cinco ou nove anos. Mas uma criança de nove anos não tem maturidade para cuidar de outra. Ela também se distrai facilmente."
A pediatra aponta também para riscos agravados durante a época das chuvas, com a existência de áreas húmidas, fios eléctricos mal colocados e, em alguns casos, roubos de cabos de alta tensão, que colocam em perigo não apenas as crianças, mas também os adultos.
"Os choques eléctricos são muito comuns nessa altura do ano. E temos crianças que colocam objectos em todo o corpo — no nariz, no ouvido e na boca. Na maioria das vezes não é grave, mas se o objecto for engolido e for parar à via respiratória, o tempo de reacção é muito curto. Em alguns casos, temos apenas três a quatro minutos para intervir."
Acidentes mais comuns
Por sua vez, a pediatra Mitza Serena reforça que os acidentes mais comuns são quedas, queimaduras, ingestão ou aspiração de objectos e intoxicações. Acrescenta que "a faixa etária mais vulnerável são as crianças menores de 5 anos. Nesta fase, a falta de noção de perigo, associada à curiosidade natural e à dependência dos cuidados de adultos, aumenta o risco de acidentes."
Segundo a mesma, há indícios de aumento progressivo desses casos. Aponta factores como a emigração dos pais, a gravidez precoce e a dificuldade financeira das famílias em colocar as crianças nas creches como elementos que contribuem para o crescimento dos acidentes domésticos.
"Os acidentes domésticos costumam ser a quarta causa de atendimento e de internamento no nosso serviço de urgência, atrás dos quadros respiratórios, lesões de pele e gastroenterites."
As consequências podem ser graves. "Vemos desde bebés de alguns meses que caíram da cama e tiveram de ser submetidos a intervenções cirúrgicas, a crianças que caíram de escadas ou casas e foram ao óbito. Também tivemos crianças que ficaram com sequelas de queimaduras, intoxicação por medicamentos, produtos de limpeza, venenos para pragas e choques eléctricos."
Mitza Serena salienta ainda que, para além dos danos físicos, há impactos emocionais duradouros. As crianças podem desenvolver medo, ansiedade, pesadelos e alterações comportamentais.
"O desenvolvimento cognitivo, social e motor da criança também pode ser afectado, especialmente se os acidentes ocorrerem em idades muito jovens. Infelizmente, acidentes domésticos continuam a ser uma das principais causas de morte entre crianças, especialmente aquelas com menos de cinco anos."
Os pais enfrentam sentimento de culpa, tristeza, sobrecarga emocional e financeira. Os profissionais de saúde também sofrem. "Vivenciamos o sofrimento das crianças e das famílias, lidamos com perdas de vidas. Também há impacto financeiro para as instituições, com ocupação de leitos, uso de aparelhos de exames complementares como a tomografia computorizada, tempos cirúrgicos de urgência e evacuações para o exterior."
Actuação conjunta
O tratamento é multidisciplinar e pode envolver desde pediatras, neurologistas, cirurgiões e fisioterapeutas, até assistentes sociais, ICCA e Procuradoria de Menores. "O acompanhamento vai depender do tipo de acidente, da sua intensidade, do tipo de tratamento realizado e das sequelas. É contínuo e sempre multidisciplinar."
Mitza Serena insiste que “a prevenção é a chave” e considera que não falta informação, mas defende uma abordagem mais sistemática: "Acho que deveria ser mais rotineiro, para que os pais ou cuidadores intuitivamente estejam alertos sobre os acidentes domésticos."
Ambas as médicas destacam a importância da actuação conjunta de escolas, centros de saúde e autoridades. As escolas podem organizar campanhas e actividades educativas. Os centros de saúde devem incluir este tema nas consultas e distribuir informação. As autoridades podem criar leis e promover acções de sensibilização pública. "A colaboração entre essas instituições é essencial para criar um ambiente mais seguro para as crianças", reforça Mitza Serena.
Sandra Lobo conclui com um alerta: "Nem sempre podemos contar com o tempo. Basta um segundo. Por isso, a vigilância constante é a melhor forma de protecção. Não há ninguém que ame a criança mais do que os pais e avós. Então é melhor apostar na prevenção. Muitas situações acontecem porque a vigilância sobre a criança não estava adequada. Temos de estar conscientes da fase da criança e atentos a ela."
Ao longo do ano, a tendência é de que os acidentes domésticos mantenham-se entre 10% a 12% dos atendimentos, aumentando nos períodos de férias. "Todos os anos é a mesma coisa. Os pequenos ficam aos cuidados dos irmãos mais velhos e notamos esse aumento. Recomendamos que todos tenham as casas preparadas para evitar estes acidentes. É uma responsabilidade colectiva, que começa em casa e se estende à comunidade e ao Estado", reitera Sandra Lobo.
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Acidentes Domésticos: Uma Ameaça Global Silenciosa
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as lesões não intencionais — como quedas, afogamentos, queimaduras, intoxicações e sufocamentos — são responsáveis por cerca de 3,16 milhões de mortes anuais em todo o mundo. Grande parte destas tragédias ocorre no ambiente doméstico e envolve crianças pequenas.
Entre os 5 e os 14 anos de idade, quedas são uma das principais causas de lesões não fatais, enquanto o afogamento figura entre as principais causas de morte infantil. A OMS sublinha que estes acidentes são, na maioria das vezes, preveníveis, com medidas simples e acessíveis.
A organização recomenda protecção de escadas e janelas com grades ou redes; uso de tampas nas tomadas eléctricas; armazenamento seguro de produtos tóxicos e medicamentos; instalação de barreiras físicas em zonas com risco de afogamento (como tanques e baldes); educação contínua de pais e cuidadores sobre os riscos e fases do desenvolvimento infantil.
A OMS destaca progressos consistentes no sector da saúde, particularmente na saúde materno-infantil em Cabo Verde. Entre 2015 e 2021, a taxa de mortalidade infantil em menores de 5 anos desceu de 15 para 14 óbitos por mil nascidos vivos, um dado que reflecte avanços nas políticas de saúde pública, acesso a cuidados primários e melhoria das condições sanitárias e nutricionais da população mais jovem.
Apesar disso, os desafios permanecem. A OMS alerta que as lesões não intencionais, muitas vezes ocorridas no espaço doméstico, continuam a ser uma das principais causas de morte infantil evitável em países com perfis demográficos e sociais semelhantes ao de Cabo Verde.
A organização sublinha que, à medida que a taxa de mortalidade por doenças infecciosas diminui, o peso das mortes por causas externas, como acidentes domésticos, tende a aumentar. Por isso, reforça a importância de se investir na prevenção de acidentes, com campanhas educativas e medidas de segurança adaptadas à realidade local.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1230 de 25 de Junho de 2025.