Per Tamm – O Sueco que Ajudou Cabo Verde a Nascer com Saúde

PorManuel Brito-Semedo,13 out 2025 8:15

​Faleceu no passado domingo, dia 7 de Outubro, em Nice, França, aos 81 anos de idade, Per Adolf Folkson Tamm, administrador sueco que dedicou parte essencial da sua vida ao povo de Cabo Verde.

O seu nome ficará para sempre ligado ao Projecto Materno-Infantil e Planeamento Familiar (PMI-PF), lançado em 1977 com o apoio técnico e financeiro da organização Rädda Barnen / ASDI, e que marcou o início da consolidação da saúde materna, da nutrição infantil e da vacinação no país, logo após a independência.

De acordo com o testemunho de Leão Lopes, artista plástico e professor que colaborou com o PMI-PF, entre as iniciativas mais emblemáticas do programa destacou-se a criação da farinha “MICAF”, mistura de cereais e leguminosas concebida localmente para combater a desnutrição infantil e apoiar o desmame progressivo. Produzida sob orientação técnica do programa dirigido por Per Tamm, a MICAF tornou-se um símbolo da cooperação sanitária e cultural da época: nutritiva, acessível e adaptada à realidade cabo-verdiana.

O projecto envolveu diversos profissionais cabo-verdianos, entre os quais Leão Lopes, responsável pela concepção gráfica da embalagem e do material educativo. O folheto recomendava o uso diário em papas para lactentes, crianças e grávidas, destacando o valor proteico e vitamínico da mistura de milho, trigo e feijão torrado – alimento de transição que marcou uma geração de mães e crianças nas ilhas.

Ainda segundo Leão Lopes, Per Tamm desempenhou papel decisivo na criação do Centro de Acolhimento para Crianças e Adolescentes Nhô Djunga, inaugurado em 1988, na Ribeira Bote, em São Vicente – uma iniciativa comunitária destinada a acolher, educar e proteger jovens em situação de vulnerabilidade. Nascido com o apoio técnico do PMI-PF, da Rädda Barnen e da comunidade local, o Centro tornou-se um espaço pioneiro de educação integral e promoção da cidadania, resultado de um esforço conjunto entre profissionais e voluntários cabo-verdianos e suecos.

Como recorda o médico João de Deus Lisboa Ramos no artigo “Contribuição para a História da Vacinação em Cabo Verde” (Anais do IHMT, 2022), o PMI-PF foi “a pedra basilar para os avanços no domínio da saúde reprodutiva”, sendo o primeiro programa estruturado de saúde pública no país. Iniciado em São Vicente e alargado, nos três anos seguintes, a Santo Antão, São Nicolau, Boa Vista, Sal e Santiago, o projecto visava a protecção da mãe e da criança, o planeamento familiar, a nutrição e a vacinação – esta última, a componente mais mobilizadora.

Durante a sua gestão, a parceria entre o Governo de Cabo Verde, a Rädda Barnen e a OMCV tornou-se exemplo de eficiência e compromisso social. Per Tamm percorreu ilhas, formou equipas, supervisionou campanhas e garantiu que a saúde chegasse às comunidades mais remotas. As equipas móveis do programa alcançaram “taxas de vacinação que chegaram a atingir 95 % das crianças completamente vacinadas” – um feito notável para o contexto da época.

Do PMI-PF nasceu o Programa Alargado de Vacinação (PAV), criado no início da década de 1990, com apoio da OMS e do UNICEF, consolidando a cobertura nacional e permitindo a erradicação de doenças como o tétano neonatal e a poliomielite. Graças a esse esforço, Cabo Verde passou a figurar entre os países africanos com melhores indicadores sanitários e um sistema de imunização exemplar.

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O Despacho n.º 29/2012 do Gabinete do Primeiro-Ministro reconheceu oficialmente o papel de Per Tamm, distinguindo-o com o primeiro grau da Medalha de Mérito Altruístico, ao lado de outros profissionais e instituições que contribuíram para o êxito do projecto. O documento sublinha “o trabalho abnegado e a dedicação de personalidades e instituições à causa da saúde, muitas vezes em condições particularmente árduas” – uma descrição que se ajusta plenamente ao seu carácter e à sua conduta.

Depois de concluir a missão, regressou a São Vicente, ilha que adoptou como segunda pátria, onde criou o Bistrô Santo André, em São Pedro – espaço de convivência que reflectia o seu gosto pela vida simples e o afecto pelas gentes mindelenses. Foi também Per Tamm quem tomou a iniciativa de restaurar e reabilitar a Capela de Santo André, então em ruínas, devolvendo-a à comunidade local. O edifício, abandonado durante anos, foi recuperado sob a sua orientação e devolvido à prática religiosa e à vida social da aldeia. O gesto deixou uma marca profunda em São Pedro, onde continua a ser lembrado com respeito e gratidão.

Entre amigos e conhecidos, era lembrado como homem de fino trato, grande humanismo e profundo amor por Cabo Verde, cuja presença irradiava serenidade e empatia. O seu legado permanece vivo na memória colectiva de um país que aprendeu, com o seu exemplo, que a saúde pública é um acto de cidadania e solidariedade. O testemunho de João de Deus Lisboa Ramos confirma essa herança: o desaparecimento do tétano neonatal, o aumento da esperança de vida e o fortalecimento da rede sanitária cabo-verdiana são frutos de um trabalho que começou com o PMI-PF e que ele ajudou a enraizar.

À família, aos amigos e a todos quantos partilharam com ele o ideal de servir, o jornal Expresso das Ilhas exprime as mais sentidas condolências. Que a sua memória perdure como símbolo da amizade entre Cabo Verde e a Suécia – e como inspiração para quantos acreditam que a saúde é o primeiro passo para a liberdade e o desenvolvimento.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,13 out 2025 8:15

Editado porAndre Amaral  em  13 out 2025 12:41

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