Declarada em 28 de Outubro de 2020, juntamente com a ilha do Maio, o Fogo tornou-se uma das duas primeiras Reservas da Biosfera de Cabo Verde, uma distinção que reconhece não apenas o valor ambiental do território, mas também o seu património cultural e potencial para desenvolvimento sustentável.
A Reserva da Biosfera do Fogo cobre todo o território da ilha e uma faixa marítima de três milhas ao redor, organizada em três zonas: núcleo, com uma área de 6.919 hectares, zona tampão, com 15.031,3 hectares e zona de transição, com 50.191,7 hectares, entre áreas terrestre e marinha.
Apesar do reconhecimento internacional, várias vozes locais indicam que a classificação ainda não trouxe efeitos concretos na vida da população.
"Não vi nenhum grande projecto estruturante nem uma grande conferência com especialistas internacionais para valorizar os recursos naturais da ilha", afirmou Miguel Montrond, mestre em Agronomia e residente em Chã das Caldeiras, que considera ainda que a ilha continua sem condições para explorar os potenciais benefícios da designação.
“Não é um mero letreiro escrito ‘Fogo Reserva da Biosfera’ que deveria ser o ganho mais visível”, acrescentou, defendendo mais intercâmbio científico, valorização ambiental e promoção da ilha.
Miguel Montrond destacou a necessidade de investimentos em investigação científica sobre a flora e a fauna locais e de promoção dos produtos endógenos como o vinho, o café e os queijos.
“Esperava um marketing sobre a ilha, para divulgar o nosso melhor – a paisagem, a cultura e os hábitos únicos, a vulcanologia, a viticultura e a enologia e os desportos próprios do Fogo. Esperava também uma maior valorização ambiental entre a sociedade civil e os governantes, para alcançarmos a tão sonhada sustentabilidade”, lamentou.
O professor e activista cultural Fausto do Rosário partilha da mesma opinião e para ele há uma incongruência entre o título de Reserva da Biosfera e práticas correntes de desrespeito ambiental, como a extracção de areia nas praias de Fonte Bila e Nossa Senhora da Encarnação, ou a ocupação desordenada em Chã das Caldeiras.
“Temos o estatuto, mas pouco mais do que isso”, afirmou Fausto Rosário que lembrou que no mesmo dia em que se anunciava a classificação, dezenas de camiões estavam a apanhar areia ilegalmente na praia de Fonte Bila.
Recordou que “o título devia significar uma nova postura, mas os crimes ambientais continuam impunes”.
Fausto Rosário também critica a degradação crescente de Chã das Caldeiras, apontando o lixo, a ocupação desordenada e a ausência de regulamentação como sinais de descaso.
“Sinceramente, e com alguma ousadia, diria que a ilha não sentiu os efeitos da reserva. Temos o estatuto e pouco mais que isso”, afirmou Fausto do Rosário, para quem a expectativa era grande.
O professor defende a criação de normativos e instrumentos de gestão que permitam defender e preservar o equilíbrio ambiental sem comprometer as actividades económicas das populações locais e sublinhou que “defender e preservar o meio ambiente não significa que não se pode apanhar nada”.
“Se houvesse um mecanismo de gestão próprio, que através da sua acção melhorasse a qualidade de vida e sustentabilidade das comunidades, já seria um grande avanço”, sublinhou.
Para o operador turístico e guia Mustafa Erin, a ausência de impacto visível deve-se, em grande parte, à falta de informação directa à população.
“Muita gente nem sabe o que é uma Reserva da Biosfera. Precisamos de acções concretas – apresentações, formações, eventos – para explicar o significado e as responsabilidades que o título traz”, defendeu.
Segundo Mustafa Erin, a comunidade de Chã das Caldeiras está naturalmente adaptada à convivência com a natureza, mas falta uma estratégia de transformação desses valores em ganhos reais, especialmente no turismo sustentável.
Já José Lima Araújo, coordenador local do projecto Destino Fogo ligado ao turismo sustentável, reconhece avanços como a criação de um plano de acção, um logotipo, um site da reserva e formações promovidas pela Associação Projecto Vitó, mas considera que os impactos ainda são “limitados”.
“A reserva podia funcionar como um selo de qualidade para produtos e serviços turísticos. Mas faltou apropriação por parte dos decisores e da própria sociedade. Há um plano, mas falta a unidade de gestão para o executar”, frisou.
José Araújo defendeu ainda a valorização do geoturismo, aproveitando a geologia e a geomorfologia únicas da ilha como complemento ao ecoturismo, hoje limitado ao Parque Natural.
O operador turístico Rosando Monteiro “Cacuca”, de Chã das Caldeiras, também reconhece algum impacto positivo, sobretudo no turismo de natureza, mas abaixo do esperado.
“Esperávamos um aumento mais visível do turismo ligado à natureza, à biodiversidade, às rotas ecológicas. Falta divulgação nas feiras internacionais e nos meios de comunicação locais”, observou.
Para o mesmo, o potencial da reserva precisa ser mais explorado nas escolas, nos meios de comunicação e nos eventos públicos, tornando-se parte do imaginário colectivo.
Cinco anos após o reconhecimento pela Unesco, a classificação da ilha do Fogo como Reserva Mundial da Biosfera continua a ser vista como um título simbólico, cujos benefícios concretos ainda não se traduziram em melhorias sustentáveis.
Vários segmentos da sociedade civil e especialistas alertam para a urgência de uma gestão integrada, comunicação eficaz e envolvimento comunitário, para que o título se transforme em verdadeiro motor de desenvolvimento sustentável.
A falta de um organismo gestor funcional, a continuidade de práticas nocivas ao ambiente e a pouca articulação entre os municípios da ilha são apontadas como entraves principais.
Enquanto isso, o vulcão, as vinhas e as paisagens dramáticas do Fogo continuam à espera que o país e mundo reconheçam e valorizem o selo da UNESCO, não como um troféu, mas como uma oportunidade viva de transformação.
homepage







