O Primeiro-ministro, José Maria Neves, reiterou, esta semana, a sua “total confiança” no Ministro do Ambiente. UCID e MpD estranham esta defesa cerrada, em um caso que ainda se encontra sob investigação judicial e apelam à assumpção dos erros e a uma melhor gestão dos recursos públicos, assente nos valores da democracia. MpD relembra que as contas ainda não foram explicadas e a UCID, por seu lado, vai mais longe e advoga a demissão de Antero Veiga.
Ao longo do seu mandato, já várias vezes o Primeiro-Ministro veio a público defender um ou outro membro da sua equipa governativa. Aconteceu, por exemplo, no âmbito de numa polémica de natureza nepotista envolvendo a Ministra da Juventude, Emprego e Desenvolvimento dos Recursos Humanos, Janira Hopffer Almada. Aconteceu aquando do naufrágio do navio Vicente, numa altura em que se somavam pedidos da demissão da ministra das Infra-estruturas e Economia Marítima, Sara Lopes. Aconteceu outras vezes. E aconteceu esta semana.
Acabado de aterrar de uma viagem de vários dias, que culminou com a sua intervenção na ONU, José Maria Neves pronunciou-se pela primeira vez sobre a polémica da gestão do Fundo do Ambiente. E fê-lo para renovar a sua “total confiança” no ministro da tutela, Antero Veiga.
“Relativamente ao Fundo do Ambiente, foi publicada uma lista, o ministro desmentiu, deu os esclarecimentos em sede do Conselho de Ministros. Por isso mantenho a total confiança nele, porque as contas vão ser apresentadas no Tribunal de Contas, assim como todos os dados vão ser apresentados publicamente para a opinião pública”, sustentou o chefe do executivo, esta segunda-feira.
José Maria Neves apelou ainda à serenidade e contenção de todos os intervenientes, num momento que considera propício a uma certa “agitação”.
“Estamos num momento pré-eleitoral em que há muita agitação, por isso queria pedir aos partidos políticos, às câmaras municipais e aos órgãos de soberania muita tranquilidade para gerirmos este período”, disse, conotando as acusações a motivos eleitorais.
“Aqui as campanhas começam muito cedo, como já se vê”, referiu.
Salientando que quem está a governar deve garantir a gestão “transparente e rigorosa” dos recursos públicos, José Maria Neves avaliza que esta tem sido a prática do seu Governo. Nesses sentido, aponta as recomendações de que todos os fundos apresentem contas para que a opinião pública tenha conhecimento de como estão a ser utilizados.
MpD espantado com validação de concorrência anti-democrática
A intervenção do Primeiro-ministro suscitou de imediato várias reacções. Da parte do MpD, as declarações de José Maria Neves foram encaradas com algum espanto político. Principalmente o facto de, aparentemente, nada de antidemocrático encontrar nas distribuição das verbas do Fundo.
“Não se compreende que um primeiro-ministro valide o financiamento de associações que concorrem com as câmaras municipais eleitas democraticamente pelas populações. As autarquias locais são órgãos locais eleitos pelas populações”, salientou o vice-presidente do MpD, Luís Filipe Tavares, à Rádio Pública.
Considerando as afirmações do primeiro-ministro “desajustadas, inoportunas e infelizes”, este dirigente lembrou que a gestão do fundo está a ser investigada pela Procuradoria-Geral da República e que o Tribunal de Contas não tem recebido as contas, e quando as recebe, é já fora de tempo.
“O Estado tem que gerir bem o dinheiro do contribuinte. É o dinheiro do povo cabo-verdiano”, apontou.
O vice-presidente do MpD diz querer ainda saber “se os 188 mil contos que receberam as associações, é uma informação verdadeira ou falsa”, assim como a lista publicada nos jornais Expresso das Ilhas e A Nação.
UCID defende demissão do ministro do Ambiente
O histórico das defesas públicas (“de coberturas”) de José Maria Neves em relação aos seus ministros, é sintoma, no entender do líder da UCID, de “um governo que não assume as responsabilidades”.
Para António Monteiro é essencial num país democrático credível que os governantes assumam responsabilidades e se acaso errarem, se demitam.
“Se não o fizerem, o primeiro-ministro deverá ter a coragem política e cívica para o fazer, o que neste caso infelizmente o Dr. José Maria Neves não tem tido”, criticou o presidente da UCID, também em entrevista à RCV.
António Monteiro considera que para “o bem da democracia”, José Maria Neves deveria obrigar o ministro Antero Veiga a “pôr o cargo à disposição, ou se não o fizer, ele mesmo o demita porque temos que dar o exemplo.”
“Este país não pode continuar a ser de brandos costumes em que os políticos fazem o que bem entenderem com os recursos públicos. As pessoas têm que assumir”.
Na opinião da UCID, independentemente da possibilidade de no futuro se esclarecer toda esta situação e se provar que Antero Veiga tem a razão do seu lado, a demissão é importante para “dar credibilidade aos políticos”.
À margem da Lei?
Toda esta polémica arrasta-se já desde Agosto, porém com contornos actualizados quase a ritmo diário. Tudo começou com a denúncia, seguida de apresentação de queixa-crime do presidente da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV), contra Antero Veiga, por alegada “violação das regras de contratação pública e de abuso de poder por parte do ministro do Ambiente”.
O presidente da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV) e da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago, Manuel de Pina, apontava, entre outras questões, o facto da Comissão que deveria aprovar esses projectos ter reunido nesse sentido.
Conforme a desde-o-início-polémica Lei nº 17/VIII/2012, que alterou o regime jurídico-tributário da Taxa Ecológica (o mecanismo mais importante de alimentação do Fundo do Ambiente), as receitas arrecadadas já não seriam em parte direccionadas para as autarquias, como até então, mas passariam a reverter inteiramente para o Fundo. O acesso a este, com a entrada em vigor da Lei em Agosto de 2012, passa a ser possível apenas mediante a submissão de projectos para avaliação.
A lei contemplava este mecanismo para a transparência e equilíbrio da gestão do Fundo do Ambiente, ao garantir, por exemplo no artigo 13, alínea 7, “em todo o processo decisório a participação organizada quer da ANMCV quer das Câmaras de Comércio e Indústria”.
O Decreto-Regulamentar nº 3/2012, de 28 de Fevereiro, que se refere já em concreto ao Fundo fala, por seu turno, em comissões para aprovar financiamentos, mas agora, apenas para entidades públicas. Seja como for, nada parece funcionar.
Como relembra Manuel de Pina ao Expresso das Ilhas, a Comissão de Selecção reuniu-se duas vezes. A primeira para discutir o seu próprio funcionamento e a segunda, recentemente, no “sentido de discutir a situação actual”.
“Mas nunca foi discutido ou aprovado nenhum projecto”, sublinha o Presidente da ANMCV.
Todos os projectos teriam sido portanto aprovados à margem da lei.
Sem o funcionamento deste mecanismo das comissões, “o mínimo que poderiam fazer, se queriam actuar com transparência, era aplicar a anterior” legislação (que desviava directamente verbas para os municípios), considera o Presidente da ANMCV.
Manuel de Pina acrescenta ainda que, além da não participação na escolha, não foi fornecida aos municípios qualquer informação de como estava a ser utilizado o dinheiro do Fundo do Ambiente.
Quanto aos projectos de associações, o tal Decreto-Regulamentar nº 3/2012, refere porém que projectos apresentados pelo “sector privado e pelas organizações da sociedade civil são analisadas pela Unidade de Apoio à Gestão do Fundo do Ambiente (UAGFA) da Direcção-Geral do Ambiente”. Mas tal não se deverá sobrepor, consideram alguns, à participação organizada em todo o processo da ANMCV. Mas é aqui que o MAHOT vai buscar o suporte legal, para financiar esses projectos. Estes são aprovados sem passar pelas comissões, enquanto, “devido à inoperância da Comissão Local e da Comissão Central, que deveriam apreciar as propostas dos municípios, das associações municipais e empresas municipais,” as autarquias alegadamente ficam desfavorecidas.
Como num jogo de ping-pong, o desfavorecimento é contrariado, nomeadamente pela direcção-geral do Ambiente, que rege o Fundo.
Entretanto, na sequência das denúncias públicas sobre a alegada má gestão das verbas do Fundo do Ambiente, a Procuradoria-Geral da República já deu início a uma investigação.
Antero Veiga (que em Agosto também formalizou uma queixa contra Manuel de Pina), por seu lado e desde o primeiro momento, refutou todas as acusações e garantiu que não tenciona pedir demissão.
O “Amiguismo” e a cor política
Depois das denúncias e queixas-crime, surgem na comunicação social as listas das transferências de dinheiro do ministério para as Associações.
De acordo com uma lista divulgada pela A Nação e pelo Expresso das Ilhas, foram distribuídos quase 188 mil contos, arrecadados através da Taxa Ecológica, por 95 associações e ONGs de todo o arquipélago, nos anos de 2013 e 2014. Trinta e quatro delas receberam mais de dois mil contos.
Logo o MAHOT veio desmentir a lista, afiançando que está é “é falsa e não oficial”, porque foi “montada”.
Segundo Antero Veiga, “nos termos da lei, as associações receberam cerca de 27.000 contos em 2013 e aproximadamente 50.000 contos em 2014, período em que os municípios terão recebido, assegura, só de Taxa Ecológica, mais de 200.000 contos, em 2013, e mais de 400.000 contos, em 2014”, escreveu-se, então.
Quanto às associações beneficiadas, a maior fatia (19.875. 569$00), de acordo com a lista divulgada na imprensa, foi parar à Associação dos Amigos para o Desenvolvimento do Brasil. O presidente da Associação desmentiu a verba, dizendo que o valor terá sido à volta de 15.000$.00. Para além dos números, que colocam esta Associação acima de alguns municípios, o facto desta ONG ser vice-presidida por um deputado do PAICV, Euclides de Pina, alimentou também a polémica.
Entrava-se na questão das associações amigas dos tambarinas. E a lista parece conotar-se com essa percepção.
Por exemplo, um outro deputado do PAICV aparece associado ao rol. Como revelou a TCV, a Associação Comunitária para desenvolvimento de Djarmai é liderada por Fernando Frederico. Esta recebeu, segundo a lista “oficial” da DNA, entretanto liberada, precisamente o mesmo valor em 2013 e 2014: 2100 contos.
E outros exemplos de associações ligadas ao partido no poder correm em toda a lista (as listas), tendo portanto sido levantada a questão do favorecimento de associações “camaradas”.
Há também exemplos de pessoas ligadas ao sector do ambiente, em cargos públicos, que submetem projectos. É o caso da Associação de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável – ADS, presidida por Florisvindo Rodrigues Furtado, que exerce cargo de direcção na Direcção Nacional do Ambiente.
Como o próprio nos confirma, a ADS apresentou um projecto de “Florestas Urbanas: Espaço Verde em Espinho Branco- São Miguel”, na comunidade dos Rabelados. Não foi o único submetido, mas apenas este, de facto, obteve um financiamento pelo Fundo do Ambiente, no ano passado, no valor de 678.454$00. Esse valor apenas cobriu parte do projecto que no total está orçado em cerca de 1.100.00$00, revela.
Para Florisvindo Furtado, a sua função profissional em nada interferiu com a selecção do projecto e a separação entre o engenheiro e o presidente da ADS é bem delimitada (mesmo que o acesso à informação possa ser maior).
“A associação é um passatempo, é um apoio comunitário”, diz, acrescentando que esteve à margem da selecção do projecto. “Isso já não é comigo”.
O projecto está um pouco atrasado mas há já resultados visíveis – como o calcetamento. Estima-se a sua conclusão ainda no final deste ano. Entretanto a ADS tem vindo a concorrer a outros financiamentos. “Ainda há dias fomos financiados pela cooperação australiana com um projecto em São Domingos, por exemplo”, adianta.
Corsino Tolentino: “Há falhas consideráveis” na gestão do Fundo do Ambiente
Corsino Tolentino, que falava no programa “Espaço Público” da RCV, diz acreditar que a tutela e responsáveis pelo Fundo do Ambiente até terão agido de “boa fé e desejo de fazer melhor”. Mas considera que a percepção geral, neste caso da gestão do Fundo do Ambiente, é de que há falhas consideráveis, por dois factores.
“Poderia resumir essas falhas ao não funcionamento da comissão de atribuição do fundo, que são fundo públicos, e ao não conhecimento dos critérios da não atribuição desses fundos,” sintetiza.
Mas o cerne da questão, sublinha, prende-se com uma observação já levantada por Jorge Figueiredo, autarca do Sal. Trata-se de perceber se estamos ou não perante uma tendência, perversa em democracia, de substituir as Câmaras Municipais (“uma base muito importante do nosso sistema democrático”) “por órgãos mais ou menos arbitrários, mais ou menos manipuláveis”.
Uma questão particularmente importante em Cabo Verde onde “ONGs e organizações da sociedade civil, de um modo geral, têm a tendência de se formarem e se porém à sombra do Estado para realizarem os seus objectivos”, sublinha, apontando que “não é isso que se pretende com a actividade cívica”.
No sentido de ultrapassar todo este território nubloso, garantindo o funcionamento melhor da gestão do fundo, o académico aponta caminhos, centrados na transparência. Para uma boa gestão do Fundo, “é fundamental que, com base na lei, a comissão funcione para agir segundo determinados critérios também conhecidos”, sendo o financiamento também devidamente controlado, resume.