Numa altura em que Cabo Verde teme as consequências das promessas eleitorais do novo presidente norte-americano quanto à deportação, o discurso do embaixador em Washington é optimista. Carlos Veiga considera que se estão a reunir as condições para que, preventivamente, sejam evitadas diversas situações de repatriamento. Veiga falou ao Expresso das Ilhas, ontem, dia em que foi assinado um memorando que permitiu a Cabo Verde sair da lista dos países não cooperativos em matéria de deportação. Evitaram-se assim possíveis sanções, entre as quais a suspensão de vistos aos cabo-verdianos. Entretanto, na lista dos deportáveis nos EUA estão cerca de 400 nacionais…
Foram várias rondas negociais, nem sempre fáceis, com ambas as partes a defenderem os seus interesses. Ao fim de mais de um ano, o consenso foi atingido. Ontem, 24, foi assinado um memorando que é, assim, o “epílogo” dessas negociações e que levará Cabo Verde a sair da lista dos países não cooperantes.
O documento, conforme revela o embaixador de Cabo Verde em Washington, Carlos Veiga, estipula as obrigações de cada parte, nomeadamente os prazos para as autoridades americanas comunicarem às autoridade cabo-verdianas a extradição, e os prazos destas para emitir os documentos necessários à mesma.
São também contempladas várias outras questões como “os itinerários que devem ser seguidos, que tipos de aviões devem ser usados, que tipo de carreiras”. A lista dos cabo-verdianos que são deportáveis devem, segundo o acordo, ser enviada para a embaixada com a devida antecedência “para que as nossas instituições aqui possam trabalhar as situações, fazer a advocacia que for possível fazer, chamar a atenção para as questões humanitárias e de saúde que se possam pôr, prever os recursos” utilizados. Enfim, ajudar os concidadãos cabo-verdianos nessa matéria. Ao mesmo tempo, uma vez decidida a deportação, a embaixada deve ter acesso a dados que lhe permitam ter um conhecimento aprofundado dessa pessoa. “Saber quem é, qual o seu cadastro, porque é deportada, quem decidiu a deportação”, entre outros aspectos.
“Cabo Verde tem de saber isso para poder monitorar o processo e ser capaz de prever as medidas necessárias para se adaptar à situação” do repatriamento e suas consequências, sublinha Carlos Veiga.
País (não) cooperativo
Com este documento ficam pois delineados os correctos procedimentos e estabelecidas as linhas que ditam a cooperação. Acto contínuo à assinatura do memorando, foi anunciada a saída de Cabo Verde da lista dos países não cooperativos. Mas afinal o que é ser não cooperativo?
Como explica o embaixador de Cabo Verde em Washington, quando há uma decisão definitiva de deportação, cabe ao país de origem receber os seus nacionais e emitir os necessários documentos de viagem.
Os Estados Unidos mantêm uma lista sobre a sua relação com os diferentes países em matéria de emigração, designadamente nessa questão da deportação. Trata-se de uma lista com três níveis, atribuídos consoante a regularidade, ou não, em que decorre o processo de repatriamento.
Há os países que cooperam linearmente neste processo, os que apresentam algum incumprimento, e os que não emitem os referidos documentos e portanto são considerados “não cooperativos”. Para estes, entre os quais se incluía, até ontem Cabo Verde, estão previstas sanções, nomeadamente a da suspensão de vistos aos seus nacionais.
A entrada de Cabo Verde nessa lista teve a ver, esclarece Carlos Veiga, com “uma paragem no fornecimento de documentos de viagem que ocorreu entre 2010 e 2013”. O país ainda não havia sido sancionado pois encetou as referidas negociações, que culminaram com a assinatura de um acordo, esta terça-feira.
400 deportáveis
Entretanto, cerca de 400 cabo-verdianos estão em risco de ser deportados, por motivos que vão do facto de terem deixado ultrapassar o prazo contemplado no visto, ao de terem cadastro criminal.
E dentre essas cerca de quatro centenas, 20 a 30 encontram-se numa posição mais problemática. São pessoas que já foram condenadas por crimes relativamente graves, sendo que algumas já cumpriram pena e encontram-se agora em liberdade.
Quando a deportação é definida, pouco há a fazer, a não ser colaborar com as autoridades dos Estados Unidos. Aliás, como ressalva Carlos Veiga, a lei americana é igual à de outros países, incluindo Cabo Verde. Em qualquer país europeu, nomeadamente, a lei é a mesma e estabelece que quem comete um crime pode ser deportado no final de cumprir a pena. “A lei cabo-verdiana prevê também a expulsão administrativa uma vez cumprida a pena”, expõe.
Assim, exemplifica o embaixador, quem entra com um visto para determinado tempo, e vê esse prazo ser ultrapassado, “sabe que esta em situação irregular e também pode ser repatriado. Todas as leis dizem isso”. Evidentemente, não há excepção para os cidadãos cabo-verdianos. Por isso, Carlos Veiga sublinha: “Devemos é trabalhar na prevenção e é isso que vamos fazer”.
Prevenir é a solução
Além do memorando ontem assinado, a embaixada em Washington está a braços com um projecto que assenta na perspectiva da prevenção. Inclusive uma prevenção precoce, iniciada ainda em Cabo Verde, no momento em que “as pessoas fazem o pedido de visto para os EUA”.
“É preciso trabalhar com essas pessoas, dar-lhes indicações, chamar-lhes a atenção para um conjunto de situações que podem ocorrer” e informá-las também dos valores e princípios americanos e modo de vida desse país.
Por outro lado, já nos Estados Unidos, é “preciso trabalhar com a comunidade, mesmo com os que estão detidos” para evitar a reincidência.
Não sendo possível evitar uma deportação, há ainda uma outra vertente a abordar que é a da reintegração dos repatriados que chegam a Cabo Verde, muitas vezes sem família nas ilhas e sem meios de subsistência. É preciso apoiá-los: “São nacionais de Cabo Verde. Cabo Verde é a pátria de todos os cabo-verdianos”.
Nesse sentido, há um projecto em estudo, sob tutela do Ministério da Inclusão Social. “Cabo Verde sabe que tem de adoptar um conjunto de iniciativas, na medida das suas possibilidades, para reintegrar essas pessoas, daí que seja importante conhecer quem vai, como vai, quando vai, quem é que essa pessoa é, que valias tem, que capacidades tem, o que fez, como devemos integrar, se tem ou não tem família…“ Ou seja, há um conjunto importante de questões que deverão constar do processo de deportação – e que o memorando assinado contempla – para que se possa efectuar essa reintegração.
Em suma, “tudo isto vai exigir, de nós, aqui [EUA] e lá [Cabo Verde], fazermos algum trabalho de casa, adoptarmos algumas medidas e fazermos uma diplomacia forte para que possamos neutralizar alguns efeitos negativos dessa situação, que é uma situação dramática, sabemos isso, mas que muitas vezes é incontornável”.
Tempos nublosos, Lei clara
Com a entrada em cena, nos Estados Unidos, de um novo presidente com anunciados preceitos anti-imigratórios, os tempos são de incerteza.
“O foco vai estar sobre as pessoas que fizeram mal ao nosso país” ou podem vir a fazer, respondeu esta segunda-feira Sean Spicer, assessor de imprensa da Casa Branca, a questões sobre a emigração.
A mensagem é algo nublosa. “Pressupõem-se que serão as pessoas que cometeram crimes graves ou estão em risco de o fazer. Não sei. Não se sabe muito bem a que é” que Spicer se refere, diz Carlos Veiga.
Na ausência de uma “clareza sobre qual vai ser a política” de Donald Trump em relação aos imigrantes e à sua expulsão, em particular, todos os anúncios feitos são, pois, seguidos com atenção pela embaixada Cabo-verdiana em Washignton.
Seja como for, “temos de ter a consciência de que há a Lei. Há leis que não foram cumpridas pelas pessoas que aqui vivem e há consequências” para o não cumprimento dessas leis, assim como há em todos os outros países, sustenta o embaixador.
Da parte das autoridades americanas, Carlos Veiga garante ter “encontrado compreensão”, e desmistifica a ideia de que com Obama a deportação era algo incomum.
“A anterior administração também deportou muitíssima gente. O presidente Obama criou algumas barreiras [à deportação] mas deportou muita gente, na base da lei americana, que não cumpriu as leis.”
Insistindo na importância da prevenção, Carlos Veiga observa, por exemplo, que há cabo-verdianos que já poderiam ter adquirido a nacionalidade americana e não o fizeram. Isso demonstra, na sua óptica, a necessidade de se fazer esse trabalho a nível preventivo.
No final, a mensagem de Carlos Veiga é optimista. Para o embaixador de Cabo Verde em Washington é possível gerir a questão da deportação nos EUA, mesmo em tempos de incerteza.
A solução é trabalhar num “perspectiva muito global, muito integrada, começando na prevenção” e quando não há hipóteses de evitar uma deportação, “gerir essas situações da melhor maneira possível.”
“Acho que já temos as condições todas para fazer isso”, termina.
Dois ou três milhões
Recorde-se que a expulsão de milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA foi uma das bandeiras de campanha do recém-empossado Presidente dos EUA, que num primeiro momento afirmou que iria proceder à deportação de 11 milhões de pessoas. Posteriormente, o então candidato republicado assinalou que a sua prioridade seria deportar os “dois ou três milhões” de clandestinos com problemas com a justiça.
Se o recém-empossado presidente eliminar, por exemplo, os limites que Obama pôs às deportações (restringindo-as, por exemplo, a recém-chegados e pessoas com múltiplas condenações criminais) a deportação aumentará. O LA Times aponta que rapidamente os números aumentariam em 75%, atingindo valores vistos pela última vez em 2012 no final do primeiro mandato de Obama, quando mais de 400 mil pessoas foram deportadas.
No ano passado, o governo Obama (que no total deportou mais pessoas do que o seu antecessor, George W. Bush) deportou “apenas” 235 mil pessoas. Noventa por cento delas terá sido condenada por crimes graves.
O caso gambiano
Desde Outubro do ano passado que a embaixada dos EUA em Banjul, na Gâmbia, deixou de conceder vistos aos “funcionários do governo gambiano, funcionários de certas entidades associadas ao governo, e aos seus cônjuges e filhos, com excepções limitadas”. Em causa estava a recusa do governo desse país em aceitar os 2000 cidadãos que os EUA pretendiam deportar.
Mais concretamente, e conforme adiantou o Departamento de Estado americano, a decisão de proceder à suspensão de vistos foi tomada depois de “várias tentativas de conversação”, e perante a não entrega, por parte da Gâmbia, dos passaportes e outros documentos necessários ao processo de deportação dos cidadãos.
Os EUA informaram ainda que iriam estender a proibição se a Gâmbia não cooperasse. Isso aconteceu numa altura em que se antevia a vitória de presidente Yahya Jammeh nas eleições de 2017.
Entretanto Jammeh foi derrotado nas urnas, pelo que se espera uma nova fase com o novo Chefe de Estado, Adama Barrow.
A suspensão de vistos é uma pena Diplomática que, até à sua aplicação ao governo gambiano, apenas tinha sido accionada uma vez, em 2001, contra a Guiana.
Texto originalmente publicado na edição impressa do nº 791 de 25 de Janeiro de 2016.