“O próprio poder judicial ainda não assumiu, na plenitude, a supremacia da Constituição”

PorExpresso das Ilhas,24 set 2022 5:57

Casimiro de Pina, Jurista e investigador

Que balanço faz dos 30 anos da Constituição da República de Cabo Verde?

A Constituição de 1992 surgiu, do ponto de vista histórico, num momento bastante especial. Isto é, na sequência daquilo que Samuel Huntington denominou, numa visão de longo alcance, “a terceira vaga de democratização”.

É uma Constituição, esta nossa, que surge após a derrocada do muro de Berlim, da União Soviética e dos regimes comunistas do Leste Europeu, que influenciaram, fortemente, a ditadura totalitária que imperou em Cabo Verde nos primeiros 15 anos após a independência nacional. A Constituição de 1992 é de rupturas e consagrou, pela 1.ª vez na nossa história de séculos, o Estado de direito democrático nestas ilhas. Funda praticamente a II República.

Seguindo essa linha fabulosa que já vem da Constituição alemã de 1949, prevê, como traços básicos, a aplicabilidade directa dos direitos, liberdades e garantias, a fiscalização da constitucionalidade das leis, o Estado social e ecológico e a sujeição da Administração Pública ao princípio da juridicidade.

O balanço da sua vigência (de 30 anos) é muito positivo.

Permitiu o usufruto das liberdades por parte de todos e uma estabilidade política invejável, fruto do “sistema de governo” gizado na Constituição. Temos uma boa institucionalização do poder em Cabo Verde. A própria sociedade civil, hoje, é mais actuante e começa a fiscalizar o cumprimento das “regras do jogo”.

O cientista político Robert Putnam cunhou esta frase lapidar: “No civil society, no democracy”.

Basta compararmos tudo isso com a instabilidade permanente em certos países vizinhos desta nossa África para termos uma noção clara da importância da “lei fundamental” e dos valores e axiomas que consagra.

O meu desejo, na esteira de um Peter Häberle, é que haja, nos anos vindouros, uma verdadeira partilha da Constituição, porque numa “sociedade aberta” todos somos intérpretes da Constituição, em diálogo incessante e permanente. É desta forma que a Constituição se enraíza, passando a ser uma verdadeira Carta dos Cidadãos e uma autêntica, se quisermos, Constituição da Liberdade.

A educação para a cidadania é, nesta dimensão, absolutamente essencial.

Qual o nível de consenso à volta da Constituição da República?

A pergunta sobre o “nível de consenso” à volta da actual Constituição democrática é assaz complexa. E problemática. O Dr. Mário Silva, um estudioso destas coisas, diz-nos por exemplo, num tom quase triunfal, que houve uma “reconciliação constitucional” após a revisão constitucional de 2010. Seria bom que assim fosse! Mas tenho sérias dúvidas quanto a isso.

Ora, o “consenso” a que ele se refere, com alguma razão, é um consenso muito superficial, mais ao nível, dir-se-ia, dos acordos político-partidários e dos circunstanciais “arranjos de poder”. Não é decisivo, parece-me.

A leitura constitucional tem que ser mais exigente, mais profunda, mais subtil.

O verdadeiro consenso, para mim, é aquele que se dá ao nível dos valores fundantes da Constituição e do Estado de direito.

Este é o ponto nuclear e verdadeiramente determinante. O problema, no fundo, é de cultura constitucional.

Vejam, contudo, o actual Presidente da República, Dr. José Maria Neves, que devia ser, por definição, o “guardião-mor da Constituição”.

Ele defende, publicamente, o regime do Partido Único e acha que havia, nesses dias, um poder judicial “independente” e garantístico, no tempo da ditadura! É absolutamente caricato, deveras. Mas é o país que nós temos. O “país real”. É um aviso muito sério, se mais não houvesse, acerca do tipo de cultura política reinante nestas plagas do Atlântico.

Recentemente, o sr. Presidente da República recebeu um diploma da Assembleia Nacional (sobre o Fundo Soberano). Sem ter exercido o direito de veto, “devolveu”, acto contínuo, o diploma à Assembleia. É uma violação muito grave da Constituição!

Creio, por outro lado, que o próprio poder judicial ainda não assumiu, na plenitude, a supremacia da Constituição. Isso é visível nalgumas sentenças.

A Constituição de 1992 trouxe uma nova concepção de Direito – para além do legalismo oitocentista e do seu redutor quadro mental –, que tem de ser vivida, reflectida e praticada. Há excepções? Felizmente! A actuação do Tribunal Constitucional tem sido benéfica, pedagógica.

Ainda há, recordando o famoso “dictum” do moleiro da Prússia, em 1745, juízes em Berlim! Como sabemos, François Andrieux imortalizou esse velho e fundamental ideal de Justiça, que já vinha, aliás, da Antígona de Sófocles e, em geral, dos primórdios da nossa civilização.

Falta-nos, em todo o caso, dar o salto decisivo: passar do “law in the books” para o emancipador “law in action”.

Que perspectivas para futuras reformas da Constituição da República?

Reformas? Sim, é preciso mudar algumas coisas no texto da actual Constituição. Voltemos ao célebre ano-marco de 2010. As maiorias consagram, por vezes, soluções que são um autêntico retrocesso. Quem leu Kelsen e o preocupante julgamento de Cristo já sabia disso. A maioria não é o critério da verdade e engana-se muitas vezes. Marx diria: quase sempre!

Vejamos o artigo 216.º/3 da Constituição. É uma norma ridícula, que não tem paralelo nas democracias mais desenvolvidas da Europa ou dos Estados Unidos da América. Jorge Carlos Fonseca, o maior penalista destas ilhas, não pode ser, neste momento, juiz do Supremo Tribunal de Justiça, por força desse triste e atávico corporativismo. Quem perde com isso? A justiça criminal e o povo cabo-verdiano, em cujo nome se administra, afinal, a Justiça.

A velha deusa, Diké, deve estar no mínimo pensativa!

Acho, também, que os mecanismos de fiscalização da constitucionalidade das leis devem ser reforçados, para que haja, na prática, um maior controlo de leis injustas ou arbitrárias e uma maior protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Só assim a Constituição funcionará como a “norma das normas”, adquirindo plena eficácia social e política.

No meu 4.º livro, editado em 2021, levanto ainda uma importante questão: a necessidade de discutirmos o problema do “estado de emergência” e das restrições aos direitos, liberdades e garantias.

Na altura, por causa da pandemia de covid-19, se calhar não havia nenhuma pressa (política) na discussão destas questões.

O medo era geral. E isso provoca normalmente passividade.

Mas é algo que merece ser, pelo menos, discutido e reflectido.

Lá fora, há uma vibrante discussão doutrinal acerca deste tópico, que nos leva até Carl Schmitt e, outrossim, à razão de ser das modernas Constituições democráticas, baseadas na ética da liberdade (uma espécie de direito natural incorporado, positivado).

A Constituição não é uma folha de papel. É, sobretudo, um espírito. Uma “forma de vida”. É a garantia dos povos que amam a autonomia e a responsabilidade.

Parece-me que é a salvaguarda disto tudo que marca e marcará, em última instância, a fronteira entre a liberdade e a tirania.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Expresso das Ilhas,24 set 2022 5:57

Editado porAntónio Monteiro  em  24 set 2022 6:54

pub.

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.