De acordo com o estudo, a evolução cabo-verdiana desde a transição para o multipartidarismo em 1991 é notória. No índice de poliarquia, que mede a qualidade global da democracia, o país passou de 0,3 em 1980 para 0,9 em 2024, um dos valores mais altos da região. A democracia eleitoral, que avalia a regularidade e a integridade das eleições, também registou melhorias expressivas, subindo de 0,1 em 1980 para 0,8 em 2024. Contudo, as dimensões liberal e deliberativa da democracia situam-se ligeiramente abaixo, com sinais de erosão desde meados da década de 2010. O relatório destaca em particular a fragilidade da componente deliberativa, que mede a capacidade das decisões políticas responderem ao interesse público e não apenas a interesses particulares.
Um dos pontos mais sensíveis apontados pelo V-Dem está na dimensão participativa da democracia cabo-verdiana. Embora as instituições sejam robustas e os processos eleitorais reconhecidos pela sua transparência, a participação dos cidadãos tem vindo a decrescer de forma acentuada. Nas eleições legislativas, a taxa de participação desceu de 75,3% em 2011 para 57,5% em 2021. Nas presidenciais, a tendência é ainda mais preocupante: apenas 35,5% dos eleitores foram às urnas em 2016 e 49,9% em 2021. Estes números revelam um afastamento gradual dos cidadãos em relação ao processo político, que pode fragilizar a legitimidade democrática a médio e longo prazo.
O relatório sublinha também as desigualdades persistentes no acesso a serviços públicos essenciais. Educação, saúde, água e oportunidades de emprego continuam a não estar distribuídas de forma equitativa, o que aprofunda clivagens sociais. A desigualdade de género é outro desafio assinalado: os homens continuam a ter maior acesso à justiça, a serviços públicos de qualidade e ao sector dos negócios, em comparação com as mulheres.
Do ponto de vista da percepção social, os dados do Afrobarometer, incluídos no relatório, evidenciam um paradoxo revelador. Apenas 27% dos cabo-verdianos afirmam estar satisfeitos com o funcionamento da democracia no país, mas 83,8% consideram-na a melhor forma de governo. Ou seja, a maioria dos cidadãos acredita no valor da democracia, mesmo reconhecendo falhas na sua aplicação prática. A confiança institucional varia consoante os órgãos avaliados: 65,2% dos cidadãos manifestam confiança no Presidente da República, 51,6% nos partidos da oposição, mas menos de metade confia no Parlamento e no partido que governa.
Comparativamente a outros países lusófonos, Cabo Verde apresenta um desempenho superior. No índice de democracia liberal e no índice de democracia eleitoral, o arquipélago posiciona-se acima de São Tomé e Príncipe, país que continua a enfrentar episódios de instabilidade política. Desde 1991, Cabo Verde contou apenas com oito governos e quatro primeiros-ministros, contrastando com São Tomé e Príncipe, que no mesmo período teve vinte governos, reflexo de maior volatilidade institucional.
Países da CPLP com resultados diferentes
O Relatório da Democracia 2025, do Instituto Variedades da Democracia (V-Dem), dedica uma secção à avaliação dos países lusófonos, revelando trajectórias distintas no espaço da CPLP. Enquanto alguns Estados consolidaram instituições democráticas, outros permanecem mergulhados em lógicas autoritárias ou enfrentam persistentes instabilidades políticas.
Portugal surge como uma democracia consolidada, mas com sinais de erosão desde meados da década de 2010. O relatório assinala uma diminuição no pluralismo dos meios de comunicação, na transparência, no acesso à justiça e na capacidade de fiscalização do executivo por parte da oposição parlamentar. A democracia portuguesa continua robusta, mas com uma qualidade inferior à que apresentava há quinze anos, situação que merece atenção sobretudo no actual contexto europeu de crescente autocratização.
O Brasil, depois de um ciclo de forte deterioração institucional durante o governo Bolsonaro, conseguiu inverter parcialmente a tendência a partir de 2022. A actuação do sistema judicial, a mobilização da sociedade civil e a recomposição do centro político no Congresso permitiram travar a deriva autoritária. Ainda assim, o país continua a enfrentar elevados níveis de polarização política e social, sendo um caso híbrido: um sistema que resistiu ao colapso democrático, mas que permanece frágil perante as tensões internas.
São Tomé e Príncipe é classificado como uma democracia, embora mais instável do que Cabo Verde. Desde 1991, o país conheceu vinte governos, resultado de frequentes confrontos institucionais entre Presidente da República e Primeiro-Ministro, bem como de divisões internas nos partidos. Esta instabilidade crónica compromete a eficácia da governação, tornando o sistema político vulnerável a crises recorrentes.
Timor-Leste é apontado como um exemplo notável de durabilidade democrática em contexto pós-colonial e pós-conflito. O país consolidou práticas eleitorais robustas e conseguiu integrar as autoridades tradicionais no processo político, o que reforçou a legitimidade e a estabilidade do regime. Apesar de desafios económicos e sociais, a democracia timorense apresenta sinais de vitalidade que contrastam com o declínio registado noutras regiões.
No grupo das autocracias, Angola mantém-se como um regime autoritário consolidado. Apesar de esforços de liberalização registados desde 2017, o controlo governamental sobre os processos eleitorais e as instituições da sociedade civil continua a ser determinante. O relatório assinala que a engenharia eleitoral e a fraca independência das entidades fiscalizadoras impedem uma verdadeira competição política.
A Guiné-Bissau permanece mergulhada numa instabilidade crónica. O país continua a ser classificado como uma autocracia, marcada por sucessivos golpes de Estado e confrontos armados entre diferentes facções políticas. Esta instabilidade institucional crónica fragiliza a consolidação democrática e afecta a governação em todas as suas dimensões.
Moçambique é outro caso de autocracia persistente, onde a violência armada, a desigualdade social e o domínio de um partido hegemónico têm bloqueado avanços democráticos. O relatório destaca que, tal como em Angola e Guiné-Bissau, as desigualdades económicas e territoriais são muito acentuadas, contribuindo para a fragilidade do sistema político.
No conjunto da CPLP, observa-se uma clivagem profunda entre regimes democráticos e autocráticos. Cabo Verde, Portugal, Brasil, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste integram o grupo das democracias, ainda que em diferentes graus de consolidação e estabilidade. Angola, Guiné-Bissau e Moçambique mantêm-se entre as autocracias, com instituições débeis e baixos níveis de liberdades políticas e cívicas.
O relatório sublinha ainda que, apesar do valor simbólico da CPLP como espaço de cooperação cultural e linguística, a comunidade não tem sido capaz de promover de forma eficaz a democracia entre os seus membros. Esta incapacidade reflecte-se na manutenção de trajectórias autoritárias em alguns países e no agravamento das desigualdades socioeconómicas, que afectam o funcionamento dos sistemas políticos.
Apesar do reconhecimento internacional como uma “ilha de democracia” em África, o relatório alerta que o país não está imune às pressões que afectam sistemas democráticos em várias regiões do mundo. O decréscimo na participação política, as desigualdades persistentes e a insatisfação popular com o funcionamento do regime representam riscos que exigem atenção. O desafio para Cabo Verde passa por aprofundar a inclusão social e reforçar a confiança dos cidadãos, de modo a consolidar os ganhos democráticos alcançados ao longo de mais de três décadas.