Entretanto, quase o dobro dos casos de roubo nas pessoas foi executado recorrendo à arma de fogo, incluindo Boka Bedju, muito embora os dados da PN não discriminem as armas. Para perpetuar a maioria dessas ocorrências – 1.694 (65,6%) – os assaltantes recorreram a armas de fogo.Para praticar um homicídio, a arma de fogo foi mais vezes requerida. Mas para provocar ofensa corporal, o protagonismo foi da arma branca. Mais do triplo dos casos – 1.675 (77,6%) – foram consumados com armas brancas. Apenas 22,4%, equivalente a 483 ocorridos, foram concretizados com recurso a armas de fogo, onde se insere o Boka Bedju.
Boka Bedju. Desta arma que fura olhos, decepa dedos e tira a vida, tão vulgar quanto temida, pouco se sabe sobre a sua origem. O lugar onde foi concebida pela primeira vez divide-se entre Santa Cruz e Santa Catarina de Santiago. Quanto ao ano da origem, é mais consensual situá-lo entre os finais dos anos 90 e inícios de 2000.
Das oficinas, garagens, inclusive dos quintais, por mãos insuspeitas e mais ou menos hábeis, nasce o Boka Bedju, arma que vem tendo um papel de destaque na prática de crimes em Cabo Verde, máxime, na Cidade da Praia.
A maioria dos homicídios com recurso a armas de fogo, incluindo Boka Bedju, foi cometido no concelho/cidade da Praia. Em 2013, dos 21 homicídios com recurso à armas de fogo, 17 ocorreram na capital do país.
Em 2014, Praia foi cenário de 2 homicídios com Boka Bedju. Nesse mesmo ano, regista-se, pela primeira vez, um assassinato com Boka Bedju na ilha de São Vicente. Em 2015, a capital do país foi palco de quatro homicídios com esta arma artesanal.
De 2013 a 2015, a Polícia Judiciária (PJ) apreendeu 36 Boka Bedju. Apreensões essas que terão acontecido no âmbito de instrução de processos em que a arma foi utilizada. O maior número de captura ocorreu em 2014, contabilizando 16 Boka Bedju. Em 2013 foram 9, e 11, em 2015.
Armas Utilizadas | |||||
Ano | Boka bedjo | Armas Brancas | Outras armas de fogo | Homicídio/outras armas | Total |
2013 | 0 | 16 | 21 | 17 | 54 |
2014 | 4 | 14 | 22 | 25 | 65 |
2015 | 4 | 16 | 11 | 15 | 46 |
2016 | 2 | 22 | 29 | 9 | 62 |
Total | 10 (4,41%) | 68 (29,9%) | 83 (36,6%) | 66 (29,1%) | 227 (100%) |
Os dados referentes a 2016 e 2017 ainda não estão disponíveis. Entretanto, a polícia científica ainda não estabelece a relação do Boka Bedju com os crimes, em especial com os de homicídio, conforme apurou o Expresso das Ilhas.
Quanto à PN, segundo o relatório do Comando Regional da PN da Praia sobre a criminalidade (2016), que tivemos acesso, os dados revelam que esta força policial apreendeu 87 Boka Bedju somente em 2016.
Além do Boka Bedju, confiscou também 232 armas de fogo convencional e 265 munições. Verifica-se que o total de armas de fogo apreendido sobrepõe-se ao de munições.
Tradição beligerante ou uma questão de cultura
Factores como sentimento de insegurança, medidas proibitivas de uso e porte de armas de fogo, aliados à facilidade de acesso actuam favoravelmente na procura da arma de fabrico artesanal, segundo o especialista em segurança, José Rebelo.
“As pessoas acreditam que estando na posse de uma arma de certa forma igualam o seu poder ao do seu potencial atacante, excluindo-as de serem vítimas”, defende Rebelo, o que, segundo ele, não passa de uma ideia errada que apenas contribuiu para o aumento do uso de armas.
Os dados estatísticos sobre Paz e Governança de 2014 revelaram que 22,4% da população de Cabo Verde acredita ter a necessidade de possuir uma arma de fogo. “Quando as pessoas pensam assim, é porque há um conjunto de aspectos que as fazem crer que estar na posse de uma arma de fogo vão estar mais seguras”, aponta.
Associado à esta percentagem relativamente significativa de pessoas com apetência para estarem armadas por motivos de segurança, medidas de proibição bem como controlos aeroportuários, nomeadamente, fazem com que as pessoas procurem alternativas.
“Em qualquer oficina artesanal é possível criar um dispositivo que, utilizando munições concretas, é capaz de produzir armas de fogo. Não há dificuldades em se aceder a uma oficina e obter uma arma de fogo por um preço relativamente baixo”, salienta José Rebelo.
Em 2008 foi criada a Comissão Nacional de Luta contra a Proliferação de Armas Ligeiras e de Pequeno Calibre (COMNAC). Tinha como missão criar um conjunto de normas para o licenciamento, uso e porte de arma de fogo como também programas e campanhas de controlo de armas de fogo.
“Acredito que neste momento a PN já deve ter mais ou menos mapeado todas as oficinas onde se fazem o fabrico de Boka Bedju”, avalia José Rebelo, alertando que este levamento isolado não vai resolver o problema.
“Tem que ser um levantamento contínuo porque confeccionar um Boka Bedju é extremamente fácil e o que é feito hoje não significa que amanhã as pessoas não vão procurar alternativas”, observa Rebelo.
Talvez seja uma herança e as pessoas possuem um direito inerente de ter uma arma de fogo. Não se sabe ao certo, todavia, a partir de que momento em que se começou a produção caseira de armas de fogo em Cabo Verde.
Recuando no tempo, é possível afixar o seu início entre as décadas de 60, 70 e 80, no interior da ilha de Santiago. Achada Leitão, localidade hoje pertencente ao município de São Salvador do Mundo, ilha de Santiago, foi onde esta prática deu seus primeiros passos.
Ali neste recôndito da ilha, cujo anonimato era preservado pela dificuldade de acesso, já se fabricava pistolas e fazia-se também a prensa e a recarga das munições. “Em Achada Leitão sempre se fabricou arma e muita gente que conhece o mecanismo físico de funcionamento de uma arma de fogo também tem produzido ao longo dos tempos armas artesanais”, acentua José Rebelo.
“Isto demonstra que não se trata de um facto recente. Apenas o aumento da procura inclusivamente, tendo o sentimento de insegurança propiciando esta tendência, obriga as pessoas a recorrer a este meio de fácil produção.”
Mário Perreia, 74 anos de idade, reformado, trabalhou como aprendiz na oficina de Antoninho, na localidade dos Picos, na década de 60. Conforme contou-nos, além de consertar utensílios de uso doméstico, fabricava facas e consertava pistolas.
“Ele [Antoninho] não fabricava directamente, apenas consertava pistolas. Alguma peça que era possível fazer e colocar na arma”, realça Mário Pereira. Disse mais: “Mas eram as coisas [armas] antigas que quando avariava uma peça as pessoas as levava para conserto.”
Entretanto, esse artífice tinha limitações na reconstrução de algumas peças. “Principalmente, o tambor. Este era mais difícil”, diz.
O seu labor de ferreiro-aprendiz foi interrompido pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) numa operação que resultou em prisão dos proprietários, tortura e encerramento das oficinas.
“Os portugueses não toleravam esse tipo de trabalho em que se manuseava equipamentos de guerra”, relembra Pereira, apontando também a operação de apreensão de machins nas casas, decretada pelas autoridades.
Boka Bedju: Muitos tiros saem pela culatra
Em termos da segurança, Boka Bedju não oferece mais do que a certeza de um disparo, perigoso tanto para o alvo quanto para o seu usuário. Um olho vazado, mão dilacerada, bagos de chumbo pelo rosto, dedos das mãos decepados, são exemplos de situações desagradáveis colhidas por muitos usuários.
Remorso, mágoa ou receio de alguma complicação com a justiça, a maioria das vítimas da Boka Bedju abordadas pelo Expresso das Ilhas não quis falar sobre o acidente com a arma.
“Não quero lembrar-me deste assunto”, escudaram-se alguns. Outros, depois de estudar o jornalista, sentenciaram: “Quero ficar longe do Tribunal”. “Vou aparecer na televisão”, questionou uma vítima de acidente com Boka Bedju da Achada Grande, cidade da Praia, quando deu conta de que estava a ser abordado pela imprensa.
De seguida acrescentou que não queria expor-se na televisão. O que não pôde esconder porém foram as duas mãos cujos dedos foram decepados por Boka Bedju.
Entretanto, João (nome fictício), vítima de um disparo acidental de Boka Bedju em 2009, sem se sentir à vontade para falar do passado, muito menos em correr o risco de beliscar a lei, foi vencido pela necessidade de desabafar.
Segundo revelou este motorista de 48 anos de idade, encontrou a arma na carroçaria da sua camioneta largada ali por alguém. Movido pela curiosidade fez um disparo que lhe lesou a mão direita com gravidade.
“Passei um mês e tal internado no hospital”, revela João, guardando ainda no olhar alguma mágoa, oito anos depois do acidente que deixou sequelas. A mão direita ficou encolhida e o dedo médio não voltou a esticar.
Apesar dos dissabores e das sequelas, João deixa-se aliviar pelo facto do desempenho da sua profissão não ter ficado comprometido. “Faço meu trabalho normalmente”, diz, enquanto observa a mão mirrada.
No pouco que disse ao pé da porta da sua casa, transpareceu grande imprudência no manuseio dessa arma? “Não conhecia esta arma”, questionámos. “Na altura muitas pessoas sofreram acidente com Boka Bedju”, responde João como que preocupado em esconder sua ingenuidade demostrando que não foi a única vítima.
Logo que recebeu alta hospitalar, João destruiu a arma que ainda se encontrava na sua posse.
Preço acessível, descartável …. Uma arma furtiva
Um Boka Bedjunão passa de uma improvisação de arma de fogo, atamancada às pressas, cuja finalidade é assustar, assaltar, agredir, até matar uma pessoa. Na maioria das vezes ela é detida por indivíduos cujo objectivo é consumar um crime “relâmpago” ou quer estar armado a custo irrisório.
O preço varia entre os dois e os cinco mil escudos. Efectivamente, o valor de um Boka Bedju depende, em boa parte, do seu fabricante e do grau de sofisticação imprimida nela.
Segundo um ex-fabricante, que não quis ser identificado, do concelho de São Salvador do Mundo, o preço do seu produto, variava consoante algumas características.
“Aquela que com um simples puxão fazia o disparo vendia por 1.500$00, com gatilho, 2.000$00 e com gatilho e monóculo, à volta de 7.000$00”, relembra este ex-fabricante, que já esteve preso por fazer Boka Bedju, informando também que após ter estado na prisão já não confecciona armas.
Sem perder a rudimentaridade, um Boka Bedju mais sofisticada não dispõe mais do que um gatilho ou um cano mais longo, e algumas vezes um cano duplo. E quando tenha havido mais exigência na concepção algumas apresentam traços parecidos com os de uma metralhadora ou de uma AK 47.
A nível balístico, o que diz Boka Bedju
Boka Bedju diferencia-se das demais armas de fogo em circulação no país por ser de engenho, concepção e fabrico totalmente artesanais. Segundo o perito em balística do Laboratório da Polícia Científica da PJ, Claudino Xavier, um Boka Bedju geralmente apresenta as seguintes características:
1. Calibre: 12 mm (para cartucho de caça); 2. Funcionamento: Arma de tiro a tiro (unitário simples); 3. Sistema de percussão: um (por vezes dois, quando possui cano duplo) percutor com percussão central e directa; 4. Carcaça (material): Metálica (tubo galvanizado); Comprimento total da arma: varia-se; 5. Cano da arma: basculante e o seu comprimento varia-se.
Segundo Claudino Xavier, os canos de Boka Bedju não apresentam estriado nos seus interiores. A arma não possuiu também sistema de segurança nem aparelho de pontaria.
“A alimentação da arma faz-se por introdução manual do cartucho na câmara”, diz este perito.
“Para se realizar disparos com armas de fogo de fabrico artesanal é necessário bascular o cano, introduzir o cartucho na câmara, voltar a fixar o cano ao corpo da arma, movimentar o percutor à retaguarda, segurando-o pela sua base para se poder realizar um disparo”, explica Claudino Xavier.
Para além de não possuir nenhum sistema de segurança, como indicou este técnico de LPC, é frequente registar fracas percussões, que são insuficientes para deflagrar o cartucho.
Boka Bedju e explicações sobre o nome
De aparência tosca, mal acabada, atamancada às pressas, com rugas salientes de solda encrostadas nas juntas, contorno ainda por limar, Boka Bedju nasce assim, fruto de uma improvisação com sobras de uma oficina de serralharia.
Boka Bedju, seu nome de batismo, nada deve ao inventor que, para conhecimento de todos, tenha sido um serralheiro com apetites belicosos. Para o nome, muitos encontram justificação na sua aparência grotesca. Outros, porém, vêem a dimensão da boca do cano como explicação e alguns legitimam o nome pelo volume do estampido de um disparo.
“Não só pelo arrebentamento forte mas também por causa da boca do cano”, explica um portador de Boka Bedju, que pediu anonimato, enquanto se-lhe-espraia no rosto um sorriso estranho, e acrescenta: “Adquiri esta arma por causa do seu baixo custo.”
Com efeito, a boca do cano não se deve muito à descrição bedju, que entre outras coisas em crioulo significa rijo, forte, velho, etc. “O cano, principalmente a boca do cano, apresenta estalos após alguns disparos”, aponta este usuário do Boka Bedju.
PN operações e dados sobre Boka Bedju
Ainda que a produção de Boka Bedju tenha ocorrido nos inícios de 2000, os primeiros dados referentes a esta arma, disponibilizados na Internet pela autoridade policial, datam do ano 2010.
Maio de 2010 – Operação “Metal” da PN. Apreensão de 30 Boka Bedju na oficina de serralharia “Metalarte LAD”, em Tira Chapéu, Praia.
Junho de 2010 – Rastreio feito pela PN na cidade da Praia. Foramidentificadas 22 oficinas suspeitas de fabricar Boka Bedju.
Janeiro de 2012 – Campanha de recuperação de armas. Cria-se uma linha verde de denúncia. A meta de recuperar mais de 8 mil armas de fogo não foi alcançada.
Janeiro de 2012 – Boka Bedju nas mãos de uma criança na cidade da Praia. Um serralheiro ofereceu um Boka Bedju a um menor de 8 anos para ser usada em brigas com os colegas da escola.
Ainda em 2012 – A COMNAC revelou que circulavam entre cinco a 8 mil armas ligeiras de pequeno calibre em Cabo Verde, sendo que 80% somente em Santiago.
Em 2014 – Dados apresentados pela PN revelaram que em 2012 e 2013, as armas de fogo, incluindo Boka Bedju, foram responsáveis por 44 homicídios, 323 ofensas corporais e 632 assaltos.
Ainda em 2014 – Em 2012-2013, a PN contabilizou um total de 538 armas de fogo, a que se juntaram outras 414 Boka Bedju, em todo o território nacional.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 838 de 20 de Dezembro de 2017.