A Saúde é uma área sempre sensível. À excepção (eventualmente) da maternidade, são poucos ou nenhuns os serviços médicos a que se recorre por motivos “alegres”. E praticamente em todos eles, encontramos muitos utentes e acompanhantes em situação de dor, stress, vulnerabilidade. São situações que, por si só, deveriam demandar uma atenção especial no atendimento. Um cuidado e empatia que muitas vezes não aparece nesse atendimento, que amiúde também não é eficaz nem eficiente.
Aliás, é precisamente a nível de atendimento que se encontra, na opinião do médico António Pedro Delgado, um dos maiores problemas do serviço nacional de saúde em Cabo Verde.
E para falar de atendimento, é preciso falar de Recursos Humanos, onde tudo começa. Em termos de quantidade, o antigo director nacional da Saúde, considera que o número de (médicos, enfermeiros e outros técnicos) é ”razoável”, apesar dos desafios criados, na distribuição, pelo facto de sermos um país formado por ilhas.
Quanto à qualidade, a nível técnico esta é avaliada como positiva, mas falha a nível da relação e intercomunicação com o utente.
“Há um défice no atendimento, de uma forma geral. A abordagem devia ser mais amiga, mais humana”, diz, referindo-se não só ao atendimento directo (o front office), mas também o próprio contacto profissional de saúde – utente.
Trata-se de um problema que começa na própria formação onde essa vertente é muitas vezes ignorada.
“A humanização, essa relação, não está bem tratada [na formação], posso afirmar”, reitera, sendo que este é uma falha transversal a vários locais de formação (repare-se que muitos profissionais, nomeadamente médicos, foram formados no exterior), e o mesmo se passará em Cabo Verde, uma vez que estaremos a “reproduzir esses modelos”.
No atendimento nas estruturas de saúde reina ainda a burocratização, o sistema de filas, cores e senhas em detrimento de uma atenção às reais necessidades, critica ainda António Pedro Delgado.
Assim, será necessário, pois, uma aposta na formação, onde sem descuidar a parte técnica e a especialização, se invista também na relação interpessoal, defende.
A par com essa humanização do atendimento, em que a formação deve apostar, tem de se apostar também na assunção da responsabilidade do trabalho que cada funcionário realiza.
Centros de saúde não criam confiança
Um outro aspecto em que o sistema falha é na organização e forma de prestação dos serviços.
“Teoricamente, o sistema tem 3 níveis – eu diria 4 – para responder a um conjunto de problemas, mas há uma mistura: traz-se para os centros de saúde um pouco a ideia do que é hospital, leva-se para o hospital os casos que poderão ser tratados ali. Há uma confusão tremenda”, critica António Pedro Delgado.
E mais uma vez, se destacam os Recursos Humanos. No entender de António Pedro Delgado, mais do que a quantidade, falha a divisão (muita concentração nos Banco de Urgência dos Hospitais) e principalmente “a parte humana”, sem a qual não é possível ter a confiança das pessoas”.
“Temos um sistema que com altos e baixos, mas que nunca conseguiu ganhar a confiança [dos utentes]. As pessoas vão desconfiadas, já pensam que não vão ser atendidas, ou que vão ser mal atendidas. Só com uma mudança na forma de fazer dos profissionais é que se poderia” conquistar essa ligação, aponta.
A dificuldade em fixar os técnicos também em nada estabiliza o sistema e gera confiança: “Os utentes vão, encontram um médico, amanhã outro, depois de amanhã nenhum. Não se cria a confiança, não se cria vínculos, respeito, não se cria respostas… e tudo isto baralha.”
Foram feitas já várias tentativas no sentido de colocar os centros de saúde a funcionar de acordo com a função para que foram delineados, “com atendimento mais humano, sendo o próprio sistema a fazer o encaminhamento nos casos necessários e a tratar os outros”. Contudo, essas tentativas acabaram por encontrar constrangimentos, “curto-circuitos” como lhes chama o antigo DNS, que acabaram minaram o seu sucesso.
Não terão sido, por exemplo, tidos em conta factores como eventuais complementos salariais passível de serem conseguidos noutras instâncias e a falta de vontade dos funcionários em fazer o sistema realmente funcionar.
Aliás, o pior constrangimento, que é, se calhar, aquele de que menos se fala terá mesmo a ver com essa vontade de fazer dos funcionários.
“Quando se quer fazer alguma coisa, faz-se o edifício e faz-se funcionar o edifício. As pessoas vão e – não todas, claro, mas uma boa parte – fazem o mínimo que têm de fazer, o que atrapalha o sistema todo”, aponta.
Mas a confusão a mistura de níveis de cuidados não se verifica só a nível dos cuidados primários.Um outro aspecto que no seu entender deveria ser pensado é “a questão das estruturas hospitalares e sua distribuição pelo país”.
Isto porque um hospital até pode ter uma boa estrutura, ser bem equipa e dotado de pessoal competente: “mas se não houver doentes não funciona.”
Os hospitais regionais, criados para proporcionar sobretudo cuidados secundários têm-se imbuído da ambição de incluir “aspectos de utilização que não condizem com a estrutura e com o conceito. Querem fazer do hospital regional um hospital central, quando ainda nem são um hospital regional.”
Assim, há que definir prioridades, garantir que se cumpre efectivamente a missão para a qual as estruturas foram criadas e só depois pensar em outras valências, aponta.
Evacuação, o 4.º nível de cuidados
António Pedro Delgado salienta ainda um outro nível de cuidados: o quarto, as evacuações para o exterior.
Para o ex-DNS quando se aborda este tema tem-se erradamente posto a tónica nos custos, que sendo importantes não são o essencial. Todos os documentos têm vindo a mostrar que não tem havido evacuação desnecessárias. “Todas precisavam de ser feitas”, aponta
Mais do que isso, “nunca vamos deixar de ter necessidade de fazer evacuações”, e as mesmas devem, pois, ser encaradas como resposta do próprio sistema nacional de saúde, necessária e complementar, às respostas já prestadas em Cabo Verde, defende.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.