Tarrafal e Calheta de São Miguel; Mar, história e tradição de mãos dadas

PorAndré Amaral,20 ago 2014 15:52

A zona norte de Santiago, especialmente o Tarrafal e a Calheta de São Miguel têm grandes potencialidades turísticas. Potencialidades que não têm passado disso mesmo. Para os empresários do sector tudo se deve à falta de divulgação e ao investimento, quase exclusivo, nas ilhas do Sal e Boa Vista.

Da última vez que estive no Tarrafal as ruas estavam cheias de gente, ouvia-se falar português, crioulo, holandês, francês e inglês. Eram as festas de Nhô Santo Amaro e a cidade vibrava com pessoas vindas de todos as origens. Da diáspora e de Cabo Verde.

 

Os hotéis estavam cheios. Arranjar um quarto foi um desafio. Foi nessa altura que conheci o Tarrafal Residence. Não fiquei lá alojado porque, à semelhança de quase todos os outros, estava cheio.

Voltei lá agora. Para um fim-de-semana.

Ia saber bem sair da Praia, deixar para trás a confusão da capital e descontrair.

Chegar ao Tarrafal é, hoje, bem mais fácil do que há meia dúzia de anos atrás. Quase todo o percurso é feito em estrada alcatroada. Um alcatrão que permite observar a mudança da paisagem desde que se sai da Praia em direcção a norte passando por São Domingos, Órgãos e Santa Catarina antes de subir e descer a Serra da Malagueta e chegar ao Tarrafal.

Chegar ao Tarrafal é dar de caras com a história. De Cabo Verde e também de Portugal e das suas ex-colónias. “Campo de Trabalho de Chão Bom”. Assim lhe chamava, de forma eufemística, o regime salazarista que ali condenou a uma morte lente centenas de opositores ao regime fascista e também combatentes da liberdade da Guiné Bissau, de Angola e de Cabo Verde. Uma ordem imposta pelo número de detidos de cada um destes países.

“Se quer entrar são 100 escudos”, diz automaticamente a guardiã dos portões do campo. Não Tem traje militar mas o tom de voz põe qualquer um em sentido.

Já não é a primeira que aqui venho. Já não são os primeiros cem escudos que entrego a esta mulher que mal me olha e se limita a estender a mão enquanto espera que lhe dê a moeda. E tem de ser o valor exacto, porque troco está difícil.

Entro. Já se passaram 40 anos sobre o 25 de Abril e 39 sobre a independência. Mas ainda hoje este campo de trabalho de Chão Bom tem uma atmosfera especial, pesada.

A crueldade dos homens está espelhada na primeira sala em que se entra. “Não estou aqui para curar doenças. Mas sim para assinar certidões de óbito”, declarou certa vez o médico do campo de concentração. E era isso que se fazia aqui. Morria-se. Devagar.

“Isso é tudo uma mentira pegada”, protesta um dos habitantes do Tarrafal. Do alto dos seus 79 anos (ou seriam 78? Ele próprio afirma não ter a certeza) diz-me que “nunca ninguém morreu, nunca ninguém foi torturado” e afasta-se protestando contra “estes turistas que vêm para aqui a querer dar lições de moral”.

Eu, sem moralismos, continuo a achar que a Holandinha, a cela de isolamento do campo de concentração, não devia ser um sítio agradável para se passar uns tempos se estivesse preso no campo do Tarrafal. Imagine que o fechavam numa caixa de cimento com menos de 1,80 de altura, sem iluminação e apenas um buraco de 20 centímetros para comunicar para o exterior. Depois diga se não era uma forma de tortura.

O caminho entre o campo de concentração e a cidade do Tarrafal tinha-o feito a pé. Fora na chegada à cidade que resolvera falar com o ancião que me apelidara de moralista.

 

Feito o check in, almoço no Tarrafal Residence. À sombra e numa esplanada virada para o mar. O menu promete. Dominado pelos peixes e mariscos percebo que um almoço para uma pessoa ficará aqui bem mais barato que o mesmo menu na Praia.

As doses são generosas, por isso se não é dado a grandes banquetes pode sempre optar por dividir o prato que escolher. Ah e não é todos os dias que encontra um restaurante que tem um engenheiro mecânico como chef.

É durante este almoço virado para o mar que vejo alguns barcos que regressam da pesca. “Moreia, garoupa, esmoregal… apanha-se de tudo um pouco. Atum também, mas cada vez menos”, diz-me Luisinho, “pescador há mais de 40 anos”.

Homem do mar e construtor de barcos, Luisinho garante-me que consegue fazer um barco entre os 5 e os 8 metros em pouco mais de um mês. “40 dias para fazer um barco de madeira e fibra”, explica-me.

Mas a pesca já não é o que era. “Isto já não dá dinheiro, vendemos um quilo de peixe a 250$00 e actualmente não apanhamos mais de oito quilos de peixe por dia”, desabafa o pescador de olhos postos no mar.

O céu está encoberto e ameaça desfazer-se em chuva. Mas nada disso afasta os banhistas. O areal está cheio de gente vinda da Praia, da Calheta ou da Assomada. Ao longe ouve-se um rádio. Funaná. Há quem dance no areal. Há quem veja, sorria e aplauda.

O Tarrafal vale a pena. Quanto mais não seja pela praia.

Domingo. Dia de regresso.

Primeiro destino, Calheta de São Miguel. No largo principal do Tarrafal apanho uma Hiace. Damos pelo menos cinco voltas ao centro da cidade à procura de passageiros. Digo pelo menos porque depois desisti de contar.

Carrinha cheia. É hora de partir e quase posso jurar que, quando deixamos o Tarrafal rumo à Calheta de São Miguel, ouvi o condutor dizer “Warp drive Mr. Sulu”, tal foi a velocidade a que fizemos a viagem.

São 10h30 quando chego à Calheta. O centro da cidade agita-se com a feira semanal. Tudo se vende, tudo se compra.

Conforme me afasto da zona central da cidade, o caos urbanístico vai aumentando.

A Calheta, a cidade, tem pouco para ver. Mas está próxima de pontos de interesse para quem gosta turismo de montanha e aventura. A Ribeira de Principal fica a poucos quilómetros e a aldeia dos Rabelados a pouco mais de 15 minutos de carro.

Percorro a pé a principal avenida da cidade e no meio de tanta casa inacabada surge um pequeno oásis. Porque é assim que se pode chamar o hotel Vila Morgana.

16 pequenas casas nas encostas de uma ribeira e viradas para o mar, capazes de fazer esquecer a paisagem exterior da cidade.

À frente, no fundo da ribeira, estende-se o mar. O imenso Atlântico.

Mas quem aqui vem não procura férias de praia e sol. A maior parte dos turistas que hoje aqui estão são alemães que vieram, segundo contam alguns deles explorar, a pé, as montanhas e as ribeiras do interior de Santiago. Talvez isso explique os pequenos-almoços que lhes enchem os pratos. Cachupa guisada, ovos mexidos, pão, queijo, fiambre e sumos naturais para acompanhar.

A tradição tem aqui um porto de abrigo. A culinária procura manter-se o mais fiel possível às tradições cabo-verdianas e por isso muita da comida é ainda feita “a lenha”, como se costuma dizer.

Este domingo avança lentamente. Aqui o tempo parece abrandar e permite o descanso que muitas vezes não se tem nas cidades grandes. Mas é tempo de regressar. Tempo de voltar à capital.

De volta à avenida principal da Calheta de São Miguel aguardo que uma nova Hiace apareça para me levar de volta à Praia. A primeira que surge passa por mim como se eu não existisse e à segunda tentativa consigo o desejado transporte em direcção a casa.

Entre a Calheta e a Praia mais uma dose de aventura. Porque viajar de Hiace em Santiago é isso mesmo, uma aventura que, desta vez, incluiu uma paragem abrupta para que o condutor pudesse comprar uma galinha e uma troca de carrinha em Santa Cruz por causa de uma avaria repentina e de que só o motorista se apercebeu.

“É domingo”, pensei eu, “não tenho pressa em chegar”. 15 minutos depois estava na Praia.

 

 

Como ir?

De carro é sempre mais confortável e viaja-se ao ritmo que se quiser. Mas de Hiace é sempre, como já disse, uma aventura. E mais barato. Muito mais barato. Por 450$00 faz-se a viagem Praia-Calheta-Tarrafal. Se pensar que de táxi, a viagem até ao Tarrafal custa cerca de 4000$00 fica tudo dito. Por isso Mr. Sulu, agora sou eu que digo, “Warp drive”.

 

Onde ficar?

No Tarrafal a oferta hoteleira é variada. Sítios onde ficar, desde pensões, residenciais, hotéis e até apartamentos privados abundam. Assim como os preços. O Tarrafal Residence oferece, em regime de alojamento e pequeno-almoço, um leque de preços que começa nos 3000$00 por dia e que vai até aos 8000$00. Na Calheta de São Miguel, a Vila Morgana é paragem obrigatória. Pelo local, pela paisagem, pelo alojamento.

 

Onde comer?

Estando em locais à beira-mar impõe-se que o menu seja de peixe. No Tarrafal há restaurantes capazes de satisfazer todos os gostos. Desde esplanadas a restaurantes. O peixe é, como se disse, obrigatório e no Tarrafal Residence é ele que domina no menu. Os preços, dos pratos de peixe, começam nos 800$00 e sobem até aos 1300$00, e aqui já estaria a pedir lagosta. Se estiver na Calheta e quiser optar por um menu ‘di terra’ no Vila Morgana a comida tradicional está sempre presente.

 

Dicas ao viajante

Tanto Tarrafal como a Calheta disponibilizam caixas Vinti4 e máquinas de pagamento automático na maior parte dos estabelecimentos comerciais e restaurantes. Farmácias, lojas e supermercados permitem compras de última hora para o viajante mais incauto.

Quanto à segurança, basta dizer que no Tarrafal ainda são muitos os que saem de casa sem deixarem a porta de casa trancada.

Se quiser pode também reservar pacotes de passeios que o levam a conhecer melhor o interior da ilha. A Executiv Tour tem pacotes que o levam a conhecer a aldeia dos Rabelados ou os recantos mais es- condidos da Serra da Malagueta.

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Autoria:André Amaral,20 ago 2014 15:52

Editado porAlexis Cardoso  em  28 ago 2014 18:41

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