São Domingos: É verde que te quero ver

PorJorge Montezinho,4 set 2014 10:03

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São Domingos tem potencialidade turística, como quase todos os recantos de Cabo Verde, mas o concelho não quer ser conhecido apenas pela oferta de sol e mar. Quer mais. Quer apostar num turismo de montanha e na vertente ecológica. Uma das jóias da coroa do município é a reserva natural de Monte Tchota. E foi exactamente o ponto mais alto de Santiago que o Expresso das Ilhas quis conhecer. O jornalista nem imaginava no que estava a meter-se.

 

Em meados dos anos 70, um inglês maluco (o senhor Bruce Chatwin) despediu-se do jornal onde trabalhava por telegrama (o Sunday Times Magazine) e embarcou para uma viagem de meses pela Argentina e o Chile, a pé ou com boleias ocasionais, levando nas costas uma mochila com dezenas de cadernos moleskine. Dessa peregrinação pela América do Sul nasceu um dos mais extraordinários livros de viagens algum dia escrito – Na Patagónia (publicado em 1977). Os críticos disseram que ele tinha embelezado demasiado a realidade.O seu biógrafo, Nicholas Shakespeare, respondeu-lhes: “ele não escreveu meia verdade, mas sim verdade e meia”.

Chatwin era um andarilho (como o próprio disse: “a verdadeira casa de um homem não é uma habitação, mas a estrada, e a vida em si é uma viagem que deve ser caminhada a pé”) e para conhecermos São Domingos também temos de andar. Ora, o primeiro segredo para uma caminhada é a escolha da hora. Por favor, não se metam a subir o Monte Tchota ao início da tarde, pelas 14h, como fez aqui este vosso escriba.

É fácil começar. A seguir à Câmara Municipal de São Domingos, vira-se na primeira rua à esquerda. Numa mercearia pergunto se estava no caminho certo e perante a anuência continuo a jornada. Quando se olha para a subida, uma estrada inclinada em paralelo sem fim à vista, começa a passar ligeiramente a vontade de dar o passo seguinte. Mas, trabalho é trabalho. Começo a ascender e quando já estava quase a deixar a zona habitada e a mergulhar no vale que se adivinhava para lá do cimo da calçada ouço: “Hey! Monte Tchota não é por aí”. Belo início. O verdadeiro caminho não fica longe, cometi o erro de ir em frente quando devia virar à direita.

Há um preço a pagar para subir a pé até ao Monte Tchota em pleno Agosto e ao início da tarde: em cinco minutos estamos encharcados em suor (nota para os leitores: façam-no logo pela manhã e não se esqueçam de levar t-shirts suplentes). A mochila com as duas garrafas de água (obrigatório levar), a máquina fotográfica, o moleskine (só levei um) e um livro (nem me perguntem porque levei um livro) começa a pesar. À volta é o verde e o silêncio, cenário perfeito para quem quer pensar durante um bom bocado (pensar, por exemplo: mas que raio de ideia foi esta de subir até lá ao cimo?). A meio do caminho está um Land Rover dos anos 80 parado numa das bermas. Será que, como nos filmes, seria capaz de fazer uma ligação directa? Claro que iria devolver o jipe ao dono, só queria mesmo era um transporte para chegar ao cume. Mas, mais à frente vejo uma senhora ainda jovem, a subir com dois bidões de água. Bem, se ela consegue, eu também.

Apesar do calor e do cansaço que começa a abater-se sobre as pernas de um fumador que não faz exercício físico há quase duas décadas, a paisagem que nos rodeia é mesmo sublime. Pinheiros, arbustos, flores pequenas e brancas, outras roxas e umas amarelas grandes que parecem pinhas ao contrário (lamento, não sei os nomes, nem tinha um botânico à mão de semear). Mas, nem tudo é pacífico. No caderninho, em letras garrafais, escrevi a frase MOSCAS CHATAS. E o calor ainda se sente. Ouvem-se os cantos dos pássaros. A t-shirt cola-se às costas. Passa uma hiace e, confesso, tenho quase a vontade de descer com ela. Mais cinco minutos e passa outra hiace, caramba, se isto não é o diabo a tentar não sei o que será.

Já disse que não devemos subir o Monte Tchota no pico do sol? Pois, nunca é de mais recordar esse ponto. Quase a meio da subida sento-me num muro simpático para ganhar fôlego e decidir se aguento até lá ao cimo. Passa uma senhora (salto alto com uns bons 8 centímetros) “nu bai, nu bai” encoraja-me. E eu sigo. Durante uns bons minutos somos companheiros de subida, depois corta à direita para a sua localidade e eu continuo. Como a vida de um jornalista é também feita de sorte, quando a subida começa a ficar mais íngreme pára um bom samaritano ao meu lado.

- Para onde vai?

- Tento chegar ao cimo do Monte Tchota.

- Não vou tão longe, mas posso dar uma boleia nos próximos 2 quilómetros, que são os mais chatos.

Se não fosse esta simpática boleia desconfio que não conseguiria fazer a subida com muita facilidade. Desço do carro e o caminho à minha frente é agora mais plano. O tempo é também mais fresco. A temperatura baixou uns bons dez graus. Está bom para continuar. Nas bermas ouve-se um restolhar contínuo. Descobre-se a seguir o porquê: gafanhotos, dezenas e dezenas deles. Mas, pode-se caminhar perfeitamente pelo meio da estrada. Praticamente não há trânsito e o que passa ouve-se bem à distância.

A paisagem é mesmo de cortar o fôlego. Olhando para trás, ao fundo, vê-se Várzea da Igreja banhada pelo sol. Dos lados, o verde e o castanho das árvores rodeados pelas cores das flores, em frente, vêem-se recortados os cumes das várias montanhas. O silêncio é tanto que se ouvem as vozes dos agricultores nas encostas e o som do ferro da enxada a bater na terra. Há um vento fresco mas agradável que restitui a energia do caminhante.

Um cão vadio desce não sabe de onde e vem ver quem é o forasteiro suado. Aparece um segundo cachorro, ambos mais curiosos do que ameaçadores. Aproximam-se, cheiram, abanam as caudas, levam uma festa atrás da orelha e seguem caminho. Do fundo do vale as pessoas a sobem até à estrada, transportando as colheitas ou água na cabeça. Passa mais uma hiace, ‘Vá com Deus’ pode ler-se no pára-brisas, acredito que esta estrada é óptima para converter o mais acérrimo ateu.

Numa rocha, do lado esquerdo, aparece pintada uma seta e Rui Vaz escrito por cima, as letras desbotadas pelo tempo. Mais à frente, num penedo semelhante, estão meia dúzia de nomes: Jessica, Nenê… coitados, devem ser os que não conseguiram chegar lá cima. Mais uns passos e aparece em branco brilhante a sigla ‘FBI’, malditos serviços secretos, estão em todo o lado.

Distraídos pelo verde, pelos sons da natureza e por pensamentos próprios chega-se ao cimo quase sem dar conta. Sentimo-nos como Sir Hillary quando conquistou o Everest, apetece espetar uma bandeira, fazer uma dancinha da vitória, levantar os braços e gritar ‘I’m the king of the world’. Ou pode optar por respirar apenas o ar puro da montanha em vez de fazer figuras tristes. Começo a pensar em ligar para a minha boleia, o que seria uma ideia brilhante se tivesse rede. No ecrã do telemóvel, nem um tracinho para contar a história. Enquanto fumava um cigarro, pensava nas opções. Na verdade, tinha apenas duas: converter-me no eremita da montanha ou fazer o caminho outra vez. Optei pela segunda, e foi mais fácil porque é quase sempre a descer. Já fiz exercício físico para os próximos três meses.

Com o espírito de Chatwin sempre presente, faltava experimentar a boleia até à Praia, mas isso fica para a próxima, estava com tanta vontade de chegar a casa que apanhei a primeira hiace para a capital, na esperança de ser a mesma onde o André andou há duas semanas e que me transportasse à velocidade da luz. A verdade é que durante o regresso os bancos da Toyota não pararam de tremer (a minha letra no caderno comprova-o) não por causa da velocidade, mas sim devido ao funaná atordoador no interior. Dormi como um anjinho até à paragem em Sucupira.

 

História de São Domingos

São Domingos fica mesmo às portas da Praia. Dez minutos de carro e chegamos ao concelho, uma extensão territorial de 134,6 Km², que corresponde aproximadamente a 13,6% do território da Ilha e a 3,3% do território nacional. A população é de aproximadamente 13.800 habitantes, segundo o Censo de 2010, distribuídos em duas Freguesias com 27 localidades.

As localidades de Ribeirão Chiqueiro, Milho Branco e Várzea da Igreja, com maior densidade populacional e com algumas características urbanas, são consideradas o “Espaço Central de São Domingos” pelo respectivo Plano de Desenvolvimento Urbano, sendo as demais comunidades muito dispersas.

O turismo é um dos sectores com potencial de crescimento. As autoridades locais dizem-me que se for promovido de forma sustentável, pode contribuir para o desenvolvimento estratégico do município e na melhoria da qualidade de vida das populações.

Em zonas como Praia Baixo, praia de Mangui ou na Prainha, em S. Francisco, pode-se praticar o turismo de sol e praia, beneficiando, no primeiro e no último caso, daquelas localidades terem infra-estruturas hoteleiras e similares de alguma qualidade.

Já a localidade de Rui Vaz e a Reserva Natural de Monte Tchota, localizada na zona alta da ilha tem excelentes condições para a prática de turismo de montanha e turismo ecológico.

O artesanato e a olaria produzidos localmente são muito procurados pelos turistas e constituem imagem de marca de São Domingos e da ilha de Santiago, apesar de serem actividades pouco expressivas em termos económicos.

Apesar do turismo em S. Domingos se encontrar numa fase embrionária, os poderes locais consideram existem boas condições naturais e ambientais para o seu desenvolvimento.

Existem vários espaços para exploração turística, como são os casos de Ribeirão de Cal, onde se encontra uma gruta com alto valor científico e uma das Maravilhas de São Domingos, ou as achadas Mitra, Vale da Custa, Móia-Móia, locais com condições naturais para a construção de campos de golfe e cadeias de hotéis.

Em Várzea da Igreja, a maior localidade, a oferta turística é também ainda reduzida. Para comer, pode-se optar pela Churrasqueira Xinda, praticamente o único restaurante da vila. Quando lá parei estava com uma certa fome, mas não foi só por isso que a comida me pareceu deliciosa. A carne era tenra e bem temperada por um molho de tomate e pedaços de salsa fresca. A salada era competente e fresca e o arroz estava cozido no ponto certo e com um sabor óptimo. No final, o preço ficou-se por uns simpáticos 800$ (com bebida e café incluído).

Se queremos só petiscar, então a opção deve ficar pelos conhecidíssimos pastéis de milho que podemos comprar logo na entrada da vila. A boa notícia é que a câmara prepara-se para requalificar esse espaço, construindo um quiosque e esplanadas para que todos os fabricantes de pastéis do concelho possam vender os seus produtos em melhores condições para todos. Principalmente para os clientes, que assim ficarão com um local de paragem e descanso.

Outro dos projectos que poderá arrancar em breve é o do Parque de Campismo radical, em Rui Vaz. Neste momento, o estudo já está a ser feito e aguarda-se apenas o parecer do Ministério do Ambiente. Pode vir a ser uma realidade em 2015.

Mas, Sâo Domingos é também um concelho de música e de músicos: é o local de origem de Anu Nobu, compositor de funanás, mas também de morna, coladeira e ainda merengue, cúmbia e samba; e é também o lugar de nascimento de Codé di Dona, exímio acordeonista e autor de clássicos como "Febri Funaná", "Fomi 47", "Praia Maria", "Yota Barela", "Rufon Baré" e "Pomba". Hoje, em Água de Gato, a cinco minutos de Várzea da Igreja, os jovens músicos de São Domingos, que se chamam a si mesmos de ‘Herdeiros’, juntam-se quase todos os fins de semana para tocar. Vale a pena ir lá desenferrujar as pernas.

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Autoria:Jorge Montezinho,4 set 2014 10:03

Editado porAndré Amaral  em  4 set 2014 10:04

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