O draft proposto pelos EUA para cada acordo SOFA (Status of Forces Agreement) é sempre o mesmo. No início das negociações é apresentado um texto inicial que é negociado entre as partes.
Aconteceu com Cabo Verde e, por exemplo, com o Senegal. Cada um destes países assinou mais ou menos recentemente um acordo deste género com os EUA.
No entanto, fazendo uma comparação, saltam à vista diferenças entre os textos assinados entre as partes. A primeira diferença, desde logo, encontra-se no artigo 3º do acordo. Cabo Verde, no ponto 2 deste artigo, “reconhece a especial importância do controlo disciplinar exercido pelas autoridades das Forças Armadas dos Estados Unidos sobre o pessoal dos Estados Unidos e, em conformidade, autoriza os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre o pessoal dos Estados Unidos durante a sua permanência no território da República de Cabo Verde”.
Um ponto que não surge no acordo firmado entre Senegal e Estados Unidos da América e que significa que, na eventualidade de qualquer crime cometido por forças americanas presentes no Senegal, serão os tribunais senegaleses a julgar o caso e não a justiça militar americana como é previsto no acordo assinado entre Cabo Verde e EUA.
Negociação?
Como já foi dito, antes da assinatura do acordo há sempre um primeiro ‘draft’ que é apresentado ao governo de cada país com quem os EUA querem assinar um acordo de cooperação.
Cabe depois a cada país negociar e apresentar alternativas para a retirada de determinados artigos com os quais possam não concordar.
Cabo Verde, no entanto, teve uma postura negocial diferente. O ‘draft’ inicial e o acordo final não têm diferenças, ou seja, Cabo Verde aceitou todas as exigências postas em cima da mesa pelos Estados Unidos da América.
Assim, com a assinatura deste acordo, os militares americanos que cometam qualquer tipo de crimes em território nacional, por exemplo, ficarão sob alçada da justiça militar do seu país não sendo julgados nos tribunais cabo-verdianos.
No entanto, o acordo prevê que se “Cabo Verde o solicitar, os Estados Unidos informarão Cabo Verde sobre o estado de quaisquer processos penais relativos a infracções alegadamente cometidas no território da República de Cabo Verde por pessoal dos Estados Unidos que envolvam cidadãos cabo-verdianos, incluindo sobre a decisão final das investigações ou da acção penal, em conformidade com a legislação e a política dos Estados Unidos. Se solicitado, os Estados Unidos envidarão esforços para permitir e facilitar a comparência e observação de representantes de Cabo Verde durante tais processos”.
Outra ressalva prevista no acordo é que os “Estados Unidos envidarão esforços para facilitar a participação de vítimas e testemunhas cabo-verdianas em processos judiciais, conforme solicitado pelo tribunal, em conformidade com as leis e regulamentos dos Estados Unidos, incluindo o Código Uniforme de Justiça Militar e os regulamentos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos” e que ambas as partes se comprometem a prestar assistência judiciária mútua na investigação de incidentes.
Inconstitucionalidade?
Um outro artigo que está a causar polémica é o artigo 12º deste acordo. Segundo o texto, EUA e Cabo Verde “renunciam a todas e quaisquer demandas entre si (excepto as resultantes de direitos contratuais) por danos, perda ou destruição de propriedade da outra Parte, ou por lesão ou morte de pessoal das forças armadas ou pessoal civil de qualquer das Partes, decorrentes do desempenho das suas funções oficiais no âmbito das actividades ao abrigo do presente Acordo”.
Os referidos artigos levantaram dúvidas ao maior partido da oposição. A presidente do PAICV solicitou mesmo um encontro de urgência com o primeiro-ministro e que acabou por se realizar no passado dia 26 de Junho.
À saída do encontro Janira Hopffer Almada voltou a destacar as dúvidas que o seu partido tem levantado quanto à constitucionalidade de algumas normas presentes no acordo e denunciou que apesar dessas incertezas, que já tinham sido apresentadas ao governo, o “acordo que nos foi apresentado pelo primeiro-ministro e que mereceu as nossas dúvidas foi exactamente o acordo que foi assinado sem a mudança de uma vírgula”. Para a presidente do PAICV levantavam-se igualmente receios sobre a constitucionalidade deste acordo.
Um argumento que foi prontamente rebatido pelo Ministro da Defesa, Luís Filipe Tavares que também esteve presente no encontro.
“O governo não tem nenhuma dúvida quanto a esta matéria. Antes de assinarmos tínhamos facultado esta informação a todos os sujeitos políticos, nomeadamente ao PAICV e UCID, e na altura não houve nenhuma manifestação em como havia inconstitucionalidade. As pessoas têm o direito de ter a sua opinião, nós temos a nossa, muito clara. Para o governo não há nenhuma inconstitucionalidade. É um acordo político muito importante, da maior relevância, com os EUA. Estamos absolutamente tranquilos, respeitamos as opiniões contrárias. Estamos convencidos que é um bom acordo para Cabo Verde”, apontou.
Soberania em causa, reconhece o Departamento de Estado
A existência de um ‘draft’ do SOFA é polémica mesmo nos Estados Unidos da América.
Um documento do Departamento de Estado a que o Expresso das Ilhas teve acesso, e que foi elaborado pelo International Security Advisory Board, aponta que em “muitos casos nos últimos anos, embora alguns novos SOFAs tenham sido negociados, os negociadores do Estado acreditam que surgiu uma lacuna entre as disposições abrangentes desejadas pelos Estados Unidos e aqueles com os quais os países anfitriões hoje estão dispostos a concordar”.
Os SOFA, aponta o mesmo documento, “implicam, por definição, algum comprometimento dos direitos soberanos que as nações anfitriãs teriam sob a regra básica de direito internacional de que estrangeiros presentes numa nação estão sujeitos à lei daquela nação - frequentemente levantam questões de orgulho nacional, controvérsia sobre a cooperação com os Estados Unidos, relutância em concordar com as exigências dos EUA por causa de um senso reduzido de dependência dos Estados Unidos em relação à segurança, resistência a renunciar a receita tributária significativa e autoridade regulatória, e competição com vizinhos que são vistos como tendo acordos de status “melhores””.
Para além disso, prossegue o documento entregue ao Departamento de Estado, “algumas outras nações podem relutar em aceitar disposições de status que protejam apenas o pessoal e as actividades de defesa dos EUA em seu território, sem conceder direitos recíprocos ao pessoal e às actividades de defesa de seus países nos Estados Unidos”.
Para além das questões de soberania interna, também a necessidade de aprovação pelas diversas agências envolvidas de qualquer alteração ao acordo causa transtornos ao Departamento de Estado norte-americano.
“Procedimentos internos dos EUA - como a exigência de que todas as variações significativas do formulário obrigam a autorização entre agências - acabam por tornar desnecessariamente difícil para nossos negociadores chegarem a compromissos que variando os termos padrão”, aponta o estudo elaborado pelo International Security Advisory Board.
“O resultado”, prossegue o estudo, “não é protecção acordada ou, na melhor das hipóteses atrasos na obtenção de acordos - e renúncia ao engajamento militar útil e actividades, ou conduzi-los sem protecções de status acordadas”.
Assim, uma “abordagem mais eficaz levaria melhor em conta que um único “global”O modelo SOFA raramente será necessário para fins dos EUA em todos os países e negociável com a nação anfitriã. Melhorar as perspectivas de negociação e a implementação de um SOFA requer mais consideração às questões do contexto de SOFA particular, reciprocidade, a natureza das actividades militares dos EUA na nação, e prioridades entre possíveis provisões de protecção”, aponta ainda o mesmo estudo.
Aprovado na generalidade
O acordo sobre o estatuto das forças militares dos Estados Unidos da América em Cabo Verde foi aprovado na última sessão parlamentar do mês de Junho, com votos a favor da maioria e abstenção da oposição.
O SOFA foi aprovado na generalidade com 34 votos a favor do MpD e abstenção de 20 deputados da oposição, dos quais 17 do PAICV e três da UCID.
O acordo, que estava a ser negociado há mais de oito anos, foi assinado a 25 de Setembro em Washington, pelo primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, no âmbito da sua primeira visita oficial àquele país.
SOFA - Senegal by Morabeza on Scribd
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.