São Vicente, lugares de memória

PorManuel Brito Semedo,26 jun 2019 6:37

“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos. A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso. O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto” – Conceição Evaristo, escritora e poeta brasileira, in Cadernos Negros, vol. 15

Praças, altos, chãs e ruas

É curioso como a toponímia dos espaços, praças, altos e lombos, chãs e ruas, as mais castiças, acaba por fixar a história cultural da ilha de São Vicente – Praça Dom Luiz, Praça Nova, Alto de Celarine ou Solarine (derivado do médico francês Salles Celarina, primeiro habitante do bairro), Alto de Companhia (bairro dos trabalhadores de carvão) e Alto de São Nicolau, Alto de Montevideo (eventualmente derivado da capital do Uruguai, talvez algum consulado ali instalado), Chã de Criket, Lombe Maclode (nome do então chefe da Millers & Corys, Mac Leod, que mandou construir o quarteirão), Rua de Lisboa, Rua de João Machado, Rua de Papa Fria, Rua de Cavoquim, Canalim de Fogá Macóc, Canalim ou Beco de Antôn Djudjim, Rua de Canecadinha, de Matijim ou de Passá Sabe, Rua de Murguin (por ali passava Mr. Morgan, chefe da Companhia Wilson’s no Dji d›Sal, bairro construído pelos ingleses no estilo das casas do Lombo Maclode), Chã de Cemitério (existiam ali três cemitérios, sendo um deles inglês e outro americano), Chã de Telegrafia...

As gentes-das-ilhas, à medida que iam chegando a São Vicente, instalavam-se nas zonas suburbanas, muitas vezes no entorno das fontes, onde procuraram desenvolver alguma agricultura de subsistência – Fonte de Meio ou Fonte de Cutú, Fonte de Filipe, Fonte de Doutor, Fonte de Cónego, Fonte de Inês, Fonte de Francês.

Assim, acabaram por ocupar os espaços mais ou menos da seguinte forma:

– gente de São Nicolau, no Alto de Companhia, Alto de São Nicolau e Lombe Maclode (Travessa de Cadamosto). Trabalhava, essencialmente, para as companhias inglesas;

–gente de Santo Antão, embrenhava-se na Ribeira Bote ou, também, na Ribeirinha e no Monte Sossego;

–gente da Boa Vista, fixada no Alto de Miramar e na Chã de Cemitério;

–gente de Santiago, saída pelo porto da Ribeira da Barca, não tinha lugar especifico. Escolhia Ribeira Bote, Monte Sossego e Rua de Craca onde se ocupava do comércio de carnes (principalmente compra e venda de bois). De recordar que o matadouro municipal (o velho e o novo) ficava nessas imediações;

–gente do Fogo, da Brava e do Sal, instalada na cintura da zona da morada.

Ribera di Paul

Em 1953, desabou uma chuva tão forte em São Vicente que fez transbordar os diques da zona da Ribeirinha inundando de água tudo que estava pela frente, de Ribeira Bote à zona da Fontinha e Salina, até desembocar no mar.

Como resultado, surgiu na Ribeira Bote uma zona de regadio, que terá durado cerca de um ano, dando origem a boas colheitas, que o povo batizou de Ribeira de Paul, por semelhança ao vale fértil do nordeste de Santo Antão com o mesmo nome.

É por essa altura que B.Léza compõe a morna “Ribera di Paul”:

RIBERA DI PAUL

Oi vamos embora para Ribera di Paul

Pá nô bá oiá quel virdim que Deus mandá

Pá nô bá oiá povo que mon na tchom

Ta fazê midjo ma fidjom

Ribera di Paul ê um paraíso

Sala de visita de Mindelo

Sala de visita, de entrevista (bis)

Oi di branco ma preto.

Essa é São Vicente, ilha-arquipélago berço de uma insularidade cosmopolita, que cresce e pulsa alicerçada em lugares de história e de memória.

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Ribera di Paul - São Vicente, 1953. Foto Blog Arroz C’Atum

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Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 916 de 19 de Junho de 2019. 

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Autoria:Manuel Brito Semedo,26 jun 2019 6:37

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  26 jun 2019 6:37

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