“Quando aparecemos ninguém nos lia”

PorAntónio Monteiro,25 ago 2019 7:18

Nesta segunda e última parte da entrevista as escritoras Dina Salústio e Vera Duarte continuam a sua reflexão sobre a escrita no feminino e debruçam-se sobre as suas mais significativas produções literárias.

Qual dos vossos livros gostariam de ver adaptado ao cinema?

Dina Salústio (DS) – Acho que a Louca de Serrano dava bem, porque as partes do romance que estão sequenciadas compunham um filme. Não pensei nele como um filme, mas enquanto escrevia estava a ver as pessoas…

Vera Duarte (VD) – No meu caso seria A Matriarca, que é uma história de mestiçagens. Eu vejo pictoricamente cada capítulo do livro e acho que daria muito bem. O Júlio Silva, que é um realizador Moçambicano, disse que quer fazer um filme de A Matriarca. Bom, vamos ver. Gostaria de ver.

Quem seria o realizar. Francisco Manso ou Leão Lopes?

DS – O Francisco Manso já tem muito trabalho e não vale a pena dar-lhe mais trabalho. Nem mesmo o Leão Lopes. Somos muito amigos, eu ia tratá-lo muito bem, mas eu gostaria de ter um realizador americano…

VD – Claro, Hollywood é a Meca do entretenimento, também eu gostaria.

O tema da nossa entrevista era a Literatura no Feminino, mas acabei por desviar-me um pouco. Aliás, há boa e má literatura e todo o resto é circunstancial, como prova a autora da série Harry Potter com cerca de 500 milhões de livros vendidos em todo o mundo.

DS – Bom, aquela mulher levanta-se de manhã, escreve uma frase e já ganhou milhões. É uma senhora superdotada, de uma imaginação sem limites. Mas há uma coisa: ela tem uma máquina por detrás dela e dos grandes escritores. Uma máquina que a suporta, que publicita os seus livros e que a obriga a escrever. Eu, ninguém me obriga a escrever…

VD – Essa pressão das editoras tem o seu lado positivo. Quando nos pedem uma coisa isso obriga-nos a escrever. Por exemplo, o conto que mandei para o livro de Oeiras. Pediram-me, sentei-me e escrevi um conto. Estimula.

Acham que há uma literatura no feminino e no masculino, ou boa e má literatura?

DS –Em boa medida, não devia haver literatura no feminino e literatura no masculino. Devia haver tout court literatura, mas nós fomos de tal maneira acantonadas no esquecimento que quando aparecemos ninguém nos lia. Então, tivemos que nos apropriarmos desse termo que já andava pelo mundo que é a literatura no feminino, porque, de facto, a literatura no feminino é uma literatura diferente. É uma literatura em que tem a voz da mulher, que trata assuntos da mulher, que tem as dores da mulher. Por exemplo, eu não sei nada do que pensam as mulheres cabo-verdianas sobre a fome, porque quem falou da fome foi Manuel Lopes, Jorge Barbosa, Luís Romano… Só homens, homens, homens, homens é que nos falaram. Mas não há nenhuma voz feminina a falar da fome. Há dias ouvi uma investigadora cabo-verdiana a dizer que as mulheres foram muito bem tratadas pelos escritores cabo-verdianos. Mas não é isso, não estou a falar da imagem, estou a falar da voz. Cada um de nós tem sua voz…

VD – Eu acho que a escrita de mulheres é uma escrita de resistência mesmo. É uma escrita de resistência ao silenciamento que nos foi feito, é uma escrita de resistência ao esquecimento, é uma escrita de resistência ao machismo…

Tem-se-lhe apontado que os seus primeiros livros de poesia tinham uma forte carga erótica.

VD – Eu já ouvi isso. É que nós vínhamos de uma época em que as mulheres não tinham voz. Aqui dentro fomos nós que começamos a experimentar muitos caminhos novos que antes não tinham sido trilhado por mulheres. Por exemplo, o professor Alberto Carvalho diz que eu fui a primeira pessoa a escrever prosa poética em Cabo Verde. Quando eu escrevi os “Exercícios Poéticos”, não sabia disso. Nós estávamos a trilhar caminhos novos. Li Madame Bovary, a mulher ama e o homem ama e a mulher morre. Em Tolstói a mulher ama e o homem ama e a mulher morre. Em Machado de Assis, a mulher ama e o homem ama e a mulher morre. Então, a gente queria de alguma forma dizer ‘nós queremos amar e queremos viver’. E por falar de libertação, acho que teremos que ir a essa escrita que muitas pessoas chamam de literatura com algum erotismo. É que estamos a falar de libertação, eu acho que é por essa via.

Se não me engano, a escrita no feminino, apesar de dar voz às mulheres, não mexe com o status quo.

DS – Eu na minha escrita, desde que comecei a escrever para a rádio, por volta de 1982, já os temas que eu abordava, eram temas tabus. O que são temas tabus? São temas que incomodam: não se podia falar da violência doméstica; não se podia falar do ciúme que provoca a morte; do ciúme estúpido, do ciúme aberrante que depois acaba na morte da mulher e que havia e há ainda em Cabo Verde; não se podia falar da violência sobre a criança. Então comecei com esses temas que ao fim e ao cabo quebravam um pouco a visão da sociedade de então. É claro que quando comecei a escrever já se falava sobre estas questões, mas havia coisas que a gente queria mostrar. Eu tinha esse veículo que era a rádio e a escrita e aproveitei.

Os vossos livros têm sido distinguidos em várias ocasiões, Prémio Sonangol para “A Candidata” (2004) de Vera Duarte e Prémio PEN de Tradução (2018) para a obra “A Louca do Serrano” de Dina Salústio. Afora o Prémio Camões que ainda não foi atribuído a nenhuma autora cabo-verdiana, a escrita no feminino, em termo de distinções, não está aquém da escrita no masculino. Qual é a vossa opinião?

VD – Acho que sim, mas a verdade é que nós queremos mais. Nós queremos que esse olhar não fique parado apenas na Vera Duarte ou na Dina Salústio, mas que seja um olhar que cubra as mulheres que escrevem. Depois da nossa geração já estamos a ter uma outra geração de mulheres que escreve de uma forma muito interessante. Se já conseguiu contabilizar cerca de 84 mulheres cabo-verdianas que de alguma forma já publicaram algum dia, o nosso objectivo é que cada vez mais o edifício literário cabo-verdiano comporte nome de homens e de mulheres.

É claro que promovendo a torto e a direito corre-se o risco de promover a mediocridade. Qual é o limite da promoção da escrita no feminino?

DS – Mas também temos que concordar que não há incentivos para a escrita feita por mulheres. Quer dizer, nós temos conquistado um espaço por mérito próprio, fruto de muito trabalho. Com livros publicados, com conferências, com palestras, com entrevistas e estamos a fazer o nosso caminho na sociedade. Então, quando escrevemos e temos algum reconhecimento é porque a sociedade se revê na nossa escrita. Mas que eu saiba, não tem havido concursos para a escrita feminina, não tem havido prémios para a escrita feminina e que eu saiba não tem havido incentivos nenhuns. Tem havido sim alguns poucos estímulos à literatura no geral. E por sorte, e porque também nós escrevemos com alguma competência, somos reconhecidas.

Acham que é razoável haver uma escrita essencialmente feminina?

DS – Não, não faz sentido dizermos que temos uma escrita essencialmente feminina, separada da escrita feita por homens. Acho que estamos em pé de igualdade com os homens. É isso que tem de se ver. Quer dizer, quando se compra um livro da Dina não é porque a Dina é mulher, mas porque gostam do livro.

VD – Eu acho o seguinte: quando falamos da escrita de mulheres é mais uma preocupação de dar visibi­lidade. É por isso é que se fala do lugar da fala. Quer dizer, já não queremos que uma mulher escreva algumas coisas sobre este ou aquele assunto e depois não se veja que aquilo foi uma escrita de uma mulher para podermos chegar àquele momento em que já não haverá efectivamente escrita de mulheres e escrita de homens. Haverá só escrita tout court.

Alguma vez pensaram em usar um pseudónimo masculino?

DS – Jamais, e se eu tivesse pensado a vergonha seria tanta que não diria.

VD – Eu nunca pensei. Eu, por exemplo, nunca quis assinar V. Duarte como assino em outras coisas, só para que se pudesse ver que aquilo era uma mulher a escrever. Na literatura eu quero que fique claro que aquilo é uma mulher. Acho que aquilo foi um tempo em que as mulheres tiveram que utilizar esse subterfúgio, mas agora só faz quem quiser.

Apenas pela temática pode-se descobrir a nacionalidade de um(a) autor(a) cabo-verdiano(a)?

DS – Eu acho que sim. Penso que quando se pega num livro meu vê-se claramente que sou uma autora cabo-verdiana. Falo das montanhas e dos vales de Santo Antão, da Baía do Porto Grande, em São Vicente, falo do interior de Santiago. Quer dizer, tudo isso tem uma força tão grande enquanto cenário que as pessoas dizem ‘esta escritora é cabo-verdiana’. Também a nossa construção de fala é diferente da do Brasil, de Portugal, de Angola, etc.

VD – O que não quer dizer que os sentimentos que o livro trata não sejam a condição da mulher e que os sentimentos não sejam sentimentos universais – a morte, o amor, a vida; enfim, acho que está tudo lá.

A primeira incursão da Vera Duarte na ficção com o romance “A Candidata” foi logo galardoada com o Prémio Sonangol. Que comentário?

VD – Foi extraordinário. Talvez por isso estou agora cada vez mais na ficção. Na verdade já tenho alguns livros de poesia publicados, mas cada vez mais estou a escrever ficção. “A Matriarca” é ficção, “Cabo Verde: Um Roteiro Sentimental, viajando pelas Ilhas da Sodad, do Sol e da Morabeza” é ficção, estou a escrever um romance e três contos, ficção, estou com um livro de ensaios, prosa. Acho que esses géneros completam-se.

A tradução inglesa de “A Louca de Serrano” conquistou o Prémio Pen Reino Unido de Tradução em 2018. Que perspectivas se lhe abrem esta distinção?

DS – Foi um prémio que me deu muito gozo, porque eram 83 países a concorrer e por isso fiquei muito feliz por a tradução do meu livro [The Madwoman of Serrano] ter conquistado o prémio. Este prémio vai permitir-me entrar no mercado inglês. Por exemplo, há dias uma revista inglesa telefonou-me para enviar um conto para ser publicado. Para o mês que vem vou para o Quénia, mercado inglês, por causa desse prémio que eu recebi na Inglaterra. Os mercados abrem-se graças aos prémios, porque os prémios fazem-nos conhecidos, porque somos publicados, porque as revistas estão atentas e os editores estão também atentos. Para o meu livro que saiu há dias [Veromar] já há um inglês que quer traduzir e telefonou-me a perguntar como é que ele poderia traduzir “Veromar” em inglês. A mesma coisa com o prémio que ganhei na Espanha [Prémio Rosalía de Castro do Centro Pen Galícia] dá-me uma nova possibilidade de ser lida em Portugal, porque o prémio já foi ganho por alguns bons escritores portugueses. Então as pessoas dizem, ‘olha, uma cabo-verdiana ganhou esse prémio que já alguns dos nossos grandes ganharam’ então os editores portugueses começaram a se interessar por mim, convidando-me para conferências, para as universidades… quer dizer tudo isso conforta e aconchega.

Qual dos vossos livros gostariam que perdurasse na memória dos leitores?

DS –Eu gostaria de ser lembrada por “Mornas eram as Noites”, que é um livro que é dado nas escolas. Os jovens com agora 30 anos lembram-se de terem lido aquele livro na escola. Gostava de ser lembrada por este livro.

VD – Acho que é pela“Amanhã amadrugada” por ser a primeira obra que publiquei. Eu queria publicar este livro para ter voz de mulher. Foi um livro querido, quando apareceu. Evidentemente que anteriormente eu escrevi poemas que publiquei no jornal “Voz di Povo” e na revista “Raízes”, mas chegou o momento em que alguma coisa dentro de mim disse-me ‘oh menina, só homens, vai’. Então peguei nos poemas, enviei para uma editora e eles publicaram.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 925 de 21 de Agosto de 2019. 

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Autoria:António Monteiro,25 ago 2019 7:18

Editado porAntónio Monteiro  em  17 mai 2020 23:20

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