Poderia ser só mais uma “virose”, mas rapidamente o pequeno surto começa a alastra-se e a fazer as primeiras vítimas mortais. A então considerada epidemia começa a ser detetada em outras cidades chinesas e em países vizinhos. A OMS, pela International Health Regulations Emergency Committee, declara a 30 de Janeiro de 2020 uma “public health emergency of international concern” (PHEIC), uma emergência de saúde pública de âmbito internacional. Várias medidas são adotadas, mas a cada dia que passa mais e mais países, ultrapassando hoje os 140, começam a diagnosticar os seus primeiros casos, sem que nada conseguisse, até esta, travar o aumento, exponencial, do número de novos infetados, e as vítimas mortais já se contam aos milhares.
A rápida propagação do vírus, a transposição da doença, agora designada COVID-19, para lá das fronteiras dos países Asiáticos, alcançando países da Europa, com particular destaque para a Itália, bem como os EUA, tendo já sido igualmente detetados casos no continente Africano e na América Latina, com cobertura mediática quase que em tempo real, têm deixado a população mundial quase que em estado de pânico levando algumas pessoas e autoridades a falarem da eminência de uma pandemia, que acabou por ser declarada pelo OMS a 11 de março de 2020. Nota-se que, pandemia, geograficamente mais abrangente do que a epidemia, é declarada quando uma doença atinge várias regiões em torno do mundo com taxas constantes de novos casos.
Mas, afinal, quem é o agente patológico responsável por toda essa preocupação acrescida gerada nas pessoas e nas autoridades?
O novo coronavírus, oficialmente denominado de SARS-CoV-2 (Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2), pertence a uma das várias subfamílias dos coronavírus designada de betacoronavirus. Na superfície do vírus, quando observado com recurso ao microscópio eletrónico, distingue-se estruturas que nos fazem lembrar coroa solar, sendo essa a origem da sua designação (corona do latim que significa coroa) (Figura 1).
Figura 1: Representação esquemática e fotomicrografia do coronavírus (Fonte: CDC, 2020 & ARQUIVO NACIONAL DE MICRORGANISMOS PATOGÊNICOS DA CHINA, 2020)
Existem hoje sete tipos identificados de coronavírus capazes de infetar humanos, mas, felizmente, não constituem, na sua larga maioria, problemas de saúde pública, afetando apenas pessoas com imunidade comprometida ao provocar-lhes sintomatologias semelhantes a um resfriado.
Essa, não é a primeira vez que um coronavírus causa epidemias na população humana. Dentro da subfamília dos betacoronavírus evidenciam-se os vírus causadores do MERS-CoV (Middle East respiratory syndrome coronavíru, Coronavírus da síndrome respiratória do médio oriente), agente etiológico da epidemia de 2002–2004, com origem na província de Guangdong, China, e o SARS-CoV (Severe acute respiratory syndrome coronavírus, Coronavírus da síndrome respiratório severo agudo), agente etiológico da epidemia de 2012–2016, com origem na Arábia Saudita, a par do agora SARS-CoV-2. As infeções por esses três vírus apresentam sintomas muito similares, como a tosse, a febre, podendo evoluir para pneumonias.
O SARS-CoV-2, agente causador da COVID-19, é um vírus que possui um material genético constituído por uma cadeia simples de RNA de sentido positivo. O material genético, quer seja DNA ou RNA, da espécie humana aos vírus, tem a função primordial de armazenar todas as informações relativas ao material de que somos feitos. Alterações nessas informações, designadas de mutações, têm o potencial de mudar as estruturas presentes na superfície dos vírus, podendo esses adquirir capacidade de infetar novos hospedeiros. Quanto mais simples for esse material genético, como é o caso do SARS-CoV-2, maior é a probabilidade de ocorrerem tais mutações. Por essa razão, admite-se pensar que em algum momento coronavírus presentes em animais, morcegos, por exemplo, conseguiram adquirir capacidade de reconhecer células humanas, principalmente as do trato respiratório, de modo a infetá-las e nelas se replicar. Essa ideia é reforçada quando comparações genéticas demostram que o SARS-CoV-2 apresentam 96% de similaridade com o BatCov RaTG13, um coronavírus encontrado em morcegos.
Todos os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios, quer isso dizer que necessitam de invadir células hospedeiras para que possam produzir novas partículas virais, designadas de virião. Essa característica é-lhes essencial, pois os vírus não possuem capacidade de se autorreplicarem e usam as células para fazê-lo. Nesse processo as células podem ser destruídas, afetando o normal funcionamento dos órgãos com o surgimento dos sintomas de doença. Possivelmente, o mesmo ocorre com o vírus SARS-CoV-2, que apresenta capacidade para invadir as células humanas do trato respiratório, replicar nelas, destruindo-as.
A interação entre células e vírus é feita via recetores específico, que são na sua maioria proteínas contendo resíduos de carboidratos. Esses recetores são essenciais para o processo de invasão dos vírus nas células hospedeiras. Nos coronavírus a proteína S, especialmente a unidade funcional S1, é a responsável por facilitar a infeção das células hospedeiras. Usando modelagem computacional conseguiu-se descobrir que a proteína S do SARS-CoV-2 interage com recetores de células humanas, mais especificamente o ACE2, presente nas células do trato respiratório. O conhecimento das formas como o vírus infeta as células é um passo essencial para o desenvolvimento de terapias e, em especial, as vacinas. Recentemente, experimentos realizados em laboratório têm demostrado que soro de pacientes já curados do COVID-19 é capaz de neutralizar novas infeções em células humanas, indicando uma possível imunização, abrindo assim portas para o desenvolvimento de uma vacina eficaz.
A infeção das células do trato respiratório permite que o vírus seja expelido do organismo em gotículas designadas de aerossóis, que ocorrem quando se tosse ou se espirra. Esses aerossóis, quando inalados por pessoas suscetíveis, infetam-nas. A transmissão do SARS-CoV-2 ocorre nos mesmos moldes que os das gripes causadas por outro vírus, designadamente os influenza. Por essa razão é que se recomenda às pessoas suspeitas ou infetadas o uso de mascaras de proteção, de modo a evitar ao máximo a contaminação de outras pessoas e do ambiente envolvente, bem como, às não infetadas a manterem um necessário distanciamento, de pelo menos um metro, de pessoas com as sintomatologias da doença, escapando assim aos aerossóis.
No entanto, fortes evidências sugerem que o vírus tem capacidade de se transmitir entre pessoas ainda na fase assintomática ou com sintomas leves da doença. Isso, acrescido de possíveis casos subnotificados de pessoas com sintomas leves e moderados, que não procuram os serviços de saúde, explicaria o porquê do rápido alastramento do vírus para mais de 140 países.
O tempo de incubação do SARS-CoV-2, período compreendido entre a infeção e o surgimento dos sintomas, é bastante variado, 2 a 14 dias. Quanto aos sintomas, 83% a 98% dos pacientes apresentam um quadro febril, 76% a 82%, com tosse, 33%, com dificuldades respiratória e, em menor percentual, com dores de cabeça, sintomas gastrointestinais - vómito e diarreia - e dores no peito. No entanto, 1/3 dos pacientes podem apresentar complicações devido à infeção, como a síndrome da disfunção respiratória aguda, lesão aguda renal, choque séptico e a pneumonia, podendo em alguns casos evoluir para óbito. Nesse ponto, convém realçar, que a taxa de letalidade, o número de mortes em relação ao de infetados, até o momento encontra-se à volta dos 3%.
Para a confirmação ou descarte de infeções por SARS-CoV-2 utiliza-se uma das técnicas mais sensíveis da biologia molecular, a reação de polimerização-transcrição reversa em tempo real (rRT-PCR), sigla em inglês. A técnica baseia-se em detetar regiões específicas do genoma do vírus em amostras proveniente do trato respiratório de pacientes suspeitos. Infelizmente, não é uma técnica muito acessível em países não desenvolvidos aliado a necessidade de laboratórios específicos. No início da epidemia, do continente Africano, apenas o Senegal e a África do Sul disponham de condições laboratoriais para o diagnóstico do COVID-19. Entretanto, mais de 11.000 prestadores de serviço de saúde desse continente já receberam treinamento para lidar com a situação atual, num grande esforço para se evitar o alastramento da doença num continente com países com sistemas de saúde dos mais frágeis. Em Cabo Verde, desde o dia 15 de março, já é possível a realização desse diagnóstico.
Até ao momento não se dispõem de um tratamento específico ou de uma vacina que combata a COVID-19, muito por conta do período decorrido do conhecimento do vírus, ainda relativamente curto (menos de quatro meses). Não obstante, a maioria das pessoas infetadas com o vírus já se encontra em fase de recuperação, tendo muitas delas tido alta hospitalar. Por se tratar, entretanto, de um novo agente de doença, a prevenção continua sendo a melhor forma de atuar. Neste sentido, é entendimento de que as pessoas que tenham estado ou tido contacto com pessoas das áreas afetadas nos últimos 14 dias e apresentarem sintomas tipo gripe devem ser consideradas como pacientes em investigação. Medidas mais extremas, com a quarentena, poderão revelar-se necessárias para se evitar o contágio.
Pessoas que eventualmente tenham sido expostas ao vírus, não têm de ser necessariamente mantidas em estruturas de saúde, mas deverão dotar-se de cuidados especiais de higienização das mãos, usar máscaras faciais quando por perto de outras pessoas, e manter-se, tanto quanto possível, insoladas nalguma dependência da casa. Em caso de internamento, aos profissionais de saúde se impõe manterem-se o mínimo necessário em contacto com o paciente, sempre devidamente protegidos.
Em Cabo Verde, as autoridades sanitárias têm realizado um trabalho meritório de prevenção, com o acompanhamento de pessoas provenientes de zonas de risco, sugerindo/colocando-as em quarentena domiciliar, bem como multiplicando as campanhas de divulgação de informações de prevenção. Aqui, cabe destacar a elaboração e divulgação do Plano Nacional de Contingência COVID-19, um instrumento de fundamental importância para uma melhor atuação, no caso de viermos a detetar infetados a nível nacional. No que a medidas de política respeita, tem-se anunciado investimentos para se dotar o país de equipamentos adequados ao diagnóstico da doença e ao isolamento de pessoas suspeitas ou que eventualmente vierem a ser acometidas da doença. Essas e outras são medidas que se impõem, quanto mais não seja por se ter anunciado no Egipto, a 14 de fevereiro, o primeiro caso de COVID-19 no continente africano, ao que se lhe seguiu casos na Nigéria, Argéria, Camarões, África do Sul, Togo e no vizinho Senegal.
Sem querer negligenciar a agora declarada pela OMS pandemia do COVID-19, observa-se que os casos se mostram em maior concentração nos países do hemisfério norte, que se encontram ainda no período de inverno. Países de clima tropical tendem a apresentar uma menor incidência de casos, maioritariamente importados dos de clima temperado, o que faz crer, no estágio atual da pandemia, na existência de condicionantes ambientais na propagação do vírus e no desenvolvimento da doença.
As vítimas mortais do COVID-19 têm sido principalmente pessoas idosas, com mais de 70 anos, maioritariamente homens e/ou doentes com debilidade imunológica. Epidemias já ocorridas, igualmente causadas por coronavírus, apresentaram taxas de letalidade bem superiores, como foi a epidemia do MERS-CoV, que registou uma taxa de 8%, ou a do SARS-CoV com taxa de 34%, sem que isso preste para se afrouxar o combate.
A vigilância, a prevenção e a informação contínua às populações continuam a ser as palavras de ordem, não havendo motivos para um pânico generalizado, que em nada ajuda.
Por Hélio Daniel Ribeiro Rocha,
Mestre em Saúde Pública pela FIOCRUZ e Doutorando em Medicina Tropical e Saúde Global pelo IMHT/UNL,
professor e investigador na Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, Unidade de Ciência da Natureza Vida e Ambiente.
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