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Presidência e Surrealismo

PorAmílcar Spencer Lopes,9 nov 2020 10:37

​O Homem é um ser, naturalmente, imperfeito. Por isso, é avaliado pelas suas virtudes e pelos seus defeitos. É um escrutínio que se faz diariamente, de acordo com os valores assumidos e os padrões definidos em cada momento histórico, pelos grupos socialmente organizados.

Por essa via, os povos procedem à aferição, definição e escolha dos seus heróis e outras entidades representativas do todo valorado. A Nação constitui-se e integra os seus símbolos que, no plano das relações humanas, criam o sentimento de pertença e de consciência nacionais.

Conhecendo, todavia, a natureza humana e a sua estabelecida imperfeição original, as nações procuram aperfeiçoar e valorizar os seus recursos humanos através, designadamente, da Educação.

É pacífico que a Educação integra três valências: o saber, o saber fazer e o saber ser ou estar. E sendo o Homem um ser social, é evidente que as duas últimas são por demais importantes, na configuração dos valores que enformam as comunidades. É por isso mesmo, que em todas as sociedades, muitas pessoas, apesar das suas poucas letras, granjeiam enorme estima e respeito da parte dos seus pares, pela sua mestria no “fazer” e, particularmente, pela sua maneira de ser e de estar, na Comunidade.

Outras, pelo contrário, apesar de conseguirem devorar todas as sebentas escolares e possuírem títulos académicos pomposos, no dia-a-dia revelam-se uns trapalhões e, não raras vezes, mal educadas.

A sociedade cabo-verdiana não foge, certamente, a esta regra universal. E é por isso que temos todos grande orgulho nos nossos homens e mulheres do saber, do saber fazer e do saber estar, que, historicamente, souberam, pelo seu pensamento, pelas suas acções e pelo seu carácter, elevar a auto-estima do povo cabo-verdiano e serem referências, no panorama nacional.

Tive, por isso, sempre muita honra em ser Cabo-verdiano. E estou certo de que os cabo-verdianos, de um modo geral, comungam desse sentimento.

Como cidadão tem acontecido, no entanto, sentir-me envergonhado de certos comportamentos e atitudes, de referenciados elementos da Comunidade Cabo-verdiana, particularmente, de indivíduos com responsabilidades públicas e de Estado.

Envergonhado e defraudado na minha qualidade de eleitor e parte do todo, porque os nossos representantes públicos são nossos e são, por assim dizer, o espelho da Nação. Mas ofendido, principalmente, na minha dignidade de ser humano. De facto, mais do que uma simples questão politica ou jurídica, é, no fundo, uma questão ética: é, a final, um dever moral de respeito pelo outro.

Faço estas considerações introdutórias, para abordar uma desseguida ocorrida, por causa de um artigo de opinião, por mim publicado no Jornal Expresso das Ilhas, edição número 983, de 30/09/2020, intitulado “Ainda a propósito do 28. Aniversário da Constituição da República ou, talvez, por isso mesmo…”.

Nele teci opiniões devidamente fundamentadas e de forma respeitosa, sobre uma propalada reunião do Conselho da República – que, como se sabe, é o órgão político de consulta do Presidente da República (PR) – convocada e realizada dias antes, para discutir assuntos relativos à Educação, Saúde e Economia.

A ilustre causídica, Dra. Lígia Lubrino Dias, provavelmente, legitimada pelo facto de ser consorte do PR (logo, virtualmente “primeira conselheira” deste) sentiu-se mandatada para contestar o meu artigo, em extenso texto, publicado na sua página de Facebook, nessa noite.

Já desempenhei funções de Estado e sei, por sinal, como é tentador, por vezes, despir-se das vestes de titular de cargo político, para tomar parte nas mundanas ocorrências do dia-a-dia; libertar-se das servidões do Poder e planar, livremente, sobre as nuvens do nosso instinto.

Não será, todavia, em rigor, o caso, uma vez que a sobredita não exerce qualquer função de Estado. É, simplesmente, a consorte do PR em funções. Ainda assim, estará, certamente, sujeita a limitações, quando mais não seja de carácter ético e protocolar.

Respeito, no entanto, a opinião por ela expressa na dita contestação, ainda que, a meu ver, não estivesse tão “livre” para a elaborar e publicitar e muito menos isenta para permitir-se fazer certas afirmações que fez. Escuso-me, por outro lado, de comentar aquele texto, embora, na minha modesta opinião, a sagaz causídica, propositadamente e com motivos que só a ela compete explicar, tenha distorcido o meu argumento, em benefício próprio.

E eventualmente insaciado com o texto da consorte, o PR, na sua forma surrealista de proceder, lavrou, no dia seguinte, um auto de fé, na sua página de Facebook.

A peça prima pela vilania grotesca. Não a transcrevo aqui porque não estou autorizado e nem teria o mau gosto de o fazer. Não se pode, felizmente, culpar o seu autor de nada. Honra seja-lhe feita! Trata-se apenas de surrealísticas e esquizofrénicas encenações, de quem não tem o arrojo de gritar a dor. Escritas e publicadas, porém, para serem lidas, obviamente.

Matreiramente, o quadro é apresentado assim como quem diz: - Quem tiver testa, que ajuste a pala! No entanto, a meu ver, a questão deve ser esta: devem os cidadãos – qualquer cidadão – permitir ou deixar que um PR, com toda a carga simbólica que representa, com o prestígio que o cargo lhe confere e os privilégios que o contribuinte sustenta, estar com caprichos e truculências dessa natureza?

Dizem os entendidos que se trata de um artifício: um arremessar de pedras para o ar, com o fim de atingir terceiros. Um tática de confronto indireto, a que se convencionou chamar de “guerra psicológica”.

O caricato é que, essas lucubrações vêm publicadas na mesma página onde também costuma anunciar ao País e à Nação os seus despachos de promulgação de leis da República, nomeações de Embaixadores e tantos outros assuntos de carácter oficial, público e de interesse geral.

Que a Presidência da República é um cargo político e público de primeiríssima linha, solenidade e importância, penso que ninguém tem dúvidas. Por outro lado, a Constituição estabelece, taxativamente, no seu artigo 129, que o PR não pode exercer “qualquer outro cargo político ou outra função pública e, em nenhum caso, desempenhar quaisquer funções privadas”.

Fico, por isso, sem saber, ao certo, se sobra muito (ou até algum) espaço para o privado. Ou seja, se a página pessoal do PR no Facebook é, realmente e nas circunstâncias acima explicitadas, um espaço de vida privada.

Ocorreu-me que o autor pudesse estar emocionalmente agitado. Comparando, todavia, a peça com outras pretéritas e públicas, de igual jaez, concluí tratar-se de um modus operandi.

A linguagem fez-me lembrar, ainda, os dias conturbados dos anos de 1974/75, em que, cabo-verdianos honestos, dedicados chefes de família, foram apelidados de “catchor di dôs pê” (cães de duas patas), pelo simples facto de estarem contra a implantação do Regime de Partido Único, nestas ilhas. O mesmo estilo; o mesmo padrão de desrespeito pela dignidade humana. Uma linguagem de inconsideração total pelo ente humano, e despudor absoluto pelos valores ancestrais, que sempre nortearam a Nação Cabo-verdiana.

Como entender que uma pessoa que, a propósito do 28. Aniversário da Constituição da República, em declarações aos órgãos de Comunicação Social, se definia a si próprio como um “conhecido e reconhecido empreiteiro da Constituição” (sic), tenha ficado tão agastado por outro cidadão como ele, da mesma República, ter comentado e desaprovado certos actos por ele praticados, no exercício de funções políticas públicas?

Empreiteiro da Constituição – logo, do Estado de Direito Democrático – que não aceita, todavia, ser contrariado. Que não reconhece o outro como cidadão nem o respeita na sua dignidade humana. Que esquece, por ventura, que para haver obra, mais importante do que empreiteiros, é haver obreiros.

Que reclama e quer ser distinguido (como, aliás, já foi) como Combatente da Liberdade da Pátria (ou seja, obreiro da Luta de Libertação Nacional, mas também correligionário e dirigente, até, do Regime de Partido Único) e, ao mesmo tempo e referindo-se ao diploma que define uma pensão financeira a ser atribuída às vítimas de tortura em SA e SV, em 1981 e 1977, respectivamente, deixa entender que foi vítima, como ele diz, dos excessos desse regime e pergunta (citamos): Porquê circunscrevê-lo (o diploma que define a pensão) apenas às vítimas dos acontecimentos decorrentes da reforma agrária de 1981, em Santo Antão e às vítimas dos acontecimentos de 1977, em São Vicente? Por que é que não se abrange a Brava, em 1979, por exemplo? Há casos conhecidos de vítimas de repressão na Brava, em 1979, casos muito graves, talvez dos mais graves até na história recente de Cabo Verde (Cfr. Edição número 982 de 23 de Setembro de 2020, do jornal EXPRESSO DAS ILHAS, pág, 15).

Vê-se, pois, que há aqui, salvo o devido respeito e opinião clínica de mérito, uma duplicidade de personalidade. Daí, essa instabilidade permanente, esse querer ser e ter tudo ao mesmo tempo, que propõe, arbitra, decide e recebe inebriado, os louros da sua inexcedível e ininterrupta ego-actividade.

Convenhamos, todavia, que, mais do que “um Presidente junto das pessoas”, o que queremos é um Presidente que as respeite, as considere na sua dignidade humana. Sejam elas as que batem palmas, as que se manifestam contra ou aquelas que, eventualmente, se abstêm.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 988 de 4 de Novembro de 2020.

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Autoria:Amílcar Spencer Lopes,9 nov 2020 10:37

Editado porAndre Amaral  em  15 ago 2021 23:21

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