Quando em 1714 a França e a Áustria assinaram o acordo que pôs fim à Guerra da Sucessão Espanhola, Luís XIV impôs que o documento fosse escrito em Francês, contrariando a prática até então habitual de usar o Latim nos tratados internacionais. Simbolicamente, a nação que à data era a mais poderosa da Europa reclamava para o seu idioma o prestígio até então adstrito ao império que moldara a construção da Europa muitos séculos atrás, e com tal eficácia o fez que o Francês iria ser unanimemente aceite como a língua da diplomacia desde então até meados do século 20.
Porém, o desfecho da Segunda Guerra transferiu para o outro lado do Atlântico o domínio das questões globais, e o estatuto de Língua Franca – ou seja, de idioma transnacional usado para superar as barreiras linguísticas entre os povos – foi então inequivocamente capturado pelo Inglês. Nos dias que correm é difícil encontrar uma instância internacional onde o Francês seja adotado como língua de referência (o Tribunal Europeu, com sede no Luxemburgo, é talvez o único exemplo relevante). Do Latim é ainda mais difícil encontrar os traços: se bem que seja ainda, com o italiano, uma das duas línguas oficiais do Vaticano, em 2014 o Papa Francisco decretou que o Latim deixaria de ser a língua oficial do Sínodo dos Bispos.
Serve esta brevíssima resenha para ilustrar como o papel transnacional de uma língua reflete em cada etapa histórica o sucesso – ou o declínio – das ambições imperiais da nação de origem. Ao contrário do que se possa pensar, a atual hegemonia da língua inglesa é meramente circunstancial: reflete o domínio geopolítico dos Estados Unidos no Pós-Guerra, e não qualquer superioridade ou vantagem específica do idioma. Neste contexto em que língua e geopolítica se misturam, compreendem-se os receios frequentemente manifestados no Sul Global quanto à atual adoção do Inglês como língua franca. Devemos recear que a “imposição” de uma língua estrangeira a um povo seja uma nova forma de colonização? E em que medida a linguagem que usamos condiciona a forma como entendemos o mundo que nos rodeia, comprometendo a autonomia cultural dos povos?
Numa primeira análise, podemos traçar um paralelo com o papel do dólar na economia globalizada desde o acordo de Bretton Woods em 1944: com cerca de 60% do total das reservas cambiais à escala global, o dólar tem permitido aos Estados Unidos a imposição de uma ordem geopolítica, para crescente desconforto de economias emergentes como os BRICS, cujas dívidas soberanas oscilam ao sabor das taxas de juro decretadas pela Reserva Federal. Mas será o paralelismo entre a moeda e a língua – trocando “saúde da economia” por “pujança da cultura” – adequado? A acreditar nos antropólogos estadunidenses E. Sapir e B. Whorf, que conduziram as suas investigações entre as duas guerras do século 20, sim. Segundo a teoria da relatividade linguística por eles desenvolvida, que atingiu grande popularidade entre os especialistas durante várias décadas, a perceção é condicionada pelo pensamento que por sua vez é condicionado pelo léxico e pela gramática, resultando que povos com línguas diferentes são necessariamente levados a construir diferentes representações da realidade. Nesta perspetiva, a adoção de uma língua única para o intercâmbio de ideias, renunciando a todas as outras, seria um cataclismo cognitivo de dimensões globais.
Mas acontece que a relatividade linguística tão em voga durante grande parte do século 20 não iria resistir ao apertado escrutínio, tanto conceptual como empírico, a que foi sujeita. Investigações no âmbito do desenvolvimento cognitivo infantil revelaram que o pensamento se desenvolve antes da fala, colocando em causa a premissa básica da teoria. Por outro lado, a repetição dos trabalhos de campo na base da teoria expuseram sérias falhas metodológicas. E atualmente predomina a noção de que a cultura de um povo condiciona a sua língua, e não o inverso. A hierarquia das línguas sempre reconheceu as diferenças entre línguas nacionais – ligadas a um território –, línguas supercentrais, usadas em múltiplos territórios, e línguas hipercentrais, que ligam entre si os povos independentemente do território. São exemplos da primeira categoria o Italiano, o Sueco ou o Crioulo de Cabo Verde. No segundo grupo estão o Espanhol, o Árabe, o Português ou o Francês. Atualmente, só uma língua preenche os requisitos da terceira categoria: o Inglês.
A esta luz, a adoção pragmática de uma língua alheia para a partilha internacional de conhecimento afigura-se uma forma inteligente de não perder o comboio cada vez mais globalizado do desenvolvimento, sem a qual se corre o risco de ficar romanticamente enclausurado num silo a reclamar a língua como bandeira identitária. No presente, a adoção do Inglês como Língua Franca da Academia é o passaporte exigido para participar na vertiginosa viagem rumo às sociedades do conhecimento. No caso de Cabo Verde, essa opção abre também as portas ao recrutamento internacional de estudantes, algo reconhecido atualmente como um ingrediente essencial da sustentabilidade financeira das instituições de ensino superior. Aceitando esta premissa, urge pôr em prática um programa de capacitação dos docentes universitários e investigadores de Cabo Verde para a utilização da língua inglesa como ferramenta de trabalho.
O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que há cerca de um século trouxe a linguística para o domínio da antropologia, afirmou que “os limites da minha língua são os limites do meu mundo”. Nesta ótica, acrescentar um idioma à proficiência dos Cabo-Verdianos nada retira, e só pode alargar a sua mundividência: o Crioulo para os afetos e a cultura, o Português para a partilha no universo da lusofonia, o Inglês para acertar o passo com o que de mais avançado se faz à escala global em matéria de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1119 de 10 de Maio de 2023.