Há muito que o bode expiatório faz parte do nosso imaginário colectivo. Na tradição hebraica antiga, era o animal sobre o qual o sacerdote lançava simbolicamente as culpas do povo, antes de o enviar para o deserto, para morrer em silêncio — levando consigo os pecados de todos. O gesto, ritual e performativo, libertava a comunidade da culpa e restaurava, temporariamente, a harmonia.
Em Cabo Verde, mesmo sem altar nem sacerdote, a figura do bode expiatório continua a circular nos corredores do discurso público. Usamo-lo para justificar o atraso, o desleixo, a incompetência — sempre em nome de um inimigo externo ou de uma herança pesada. A culpa nunca mora aqui, nunca é nossa. Está sempre ao lado, atrás, ou por vir. É sempre o "outro" que falhou. E, nesse gesto, repetimos, como num teatro de sombras, o velho ritual do bode: elegemos o culpado, atribuímos-lhe os nossos males, e empurramo-lo para o deserto da opinião pública.
Recordo que, em 2014, escrevi uma crónica com humor e ironia sobre os "bodes" da política cabo-verdiana. Falei do BEC – o Bode do Estado Colonial, que carregou durante décadas as falhas da sociedade pré-independente; do BEPU – o Bode do Estado do Partido Único, onde se alojaram os vícios do autoritarismo e da estagnação; e, por fim, do BEUP – o Bode do Estado do Único Partido, que simbolizava as promessas goradas da alternância democrática. A cada ciclo político, um novo bode era conduzido ao deserto, e com ele, supostamente, as culpas do regime cessante.
Anunciei então, em jeito de alerta, a chegada do BEAT – o Bode da Estratégia da Transformação, que emergiria com a mudança governativa de 2016. Um bode moderno, vestido de reformas, digitalização, investimento externo e novas tecnologias. Mas também este, quando questionado, acabaria por revelar a sua natureza de bode – ágil na fuga à responsabilidade, hábil em prometer e evasivo em cumprir.
Chegados a 2025, há uma inquietação que me acompanha: que bode carregamos hoje? Ainda falamos do colonialismo como se o presente não nos dissesse respeito? Ainda usamos o passado como biombo para a nossa paralisia cívica? Que responsabilidade temos, afinal, como cidadãos e como comunidade, na construção do país que queremos? E que bodes andamos a alimentar, entre o ruído das redes sociais e o silêncio cúmplice das instituições?
É certo que as democracias vivem de conflito e confronto de ideias. Mas também precisam de maturidade política, de memória crítica e de um olhar ético sobre o poder. Quando tudo é bode, já ninguém responde. E a irresponsabilidade generalizada transforma o espaço público num palco de distrações, onde se grita muito e se escuta pouco.
Talvez nos falte hoje o contrário do bode: um espelho. Um espelho onde nos possamos ver, com as nossas fragilidades e potencialidades, com os nossos erros e promessas. Um espelho que não nos isente, mas nos convoque. Que nos lembre que, entre a expiação e a transformação, há um caminho de compromisso que só pode ser trilhado com coragem e verdade.
Porque o deserto é também lugar de travessia. E talvez este seja o tempo não de enviar o bode, mas de o seguir – para aprender no silêncio, reaprender a escutar, e regressar com sentido de comunidade e vontade de mudança.
– Manuel Brito-Semedo