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Cabo Verde: Uma Identidade Crioula às Portas do Atlântico

PorBrito-Semedo16 jun 2025 22:12

 

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Foto gerada pela IA

 

 

Neste post, partilho algumas reflexões que tenho vindo a aprofundar sobre a nossa identidade cabo-verdiana, tantas vezes simplificada ou instrumentalizada.

 

Este texto começou por ser uma entrevista dada ao programa “Fala África”, feito pelos estudantes do 3.º ano do curso de Ciências da Comunicação e Multimédia da Uni-CV. Depois foi transformado numa crónica, mantendo o tom de conversa com o público, e não apenas sobre ele. Fala de quem somos, das memórias que guardamos e dos sonhos que temos. É também um convite ao diálogo – sobretudo com os mais novos, que procuram o seu lugar entre línguas, redes sociais e caminhos cruzados.

 

Porque a crioulidade não é só herança. É ferramenta e horizonte.

 

Uma conversa sobre memória, pertença e juventude.

 

Uma identidade feita de muitas raízes

 

Quando digo que a identidade cabo-verdiana é “compósita”, refiro-me ao facto de ser feita de muitas influências. Cabo Verde não tinha população antes da chegada dos europeus e dos africanos escravizados. Foi desse encontro, duro e criativo, que nasceu o povo crioulo.

 

Somos fruto de uma mistura: de sangue, de culturas, de línguas. Temos o batuque e os ferrinhos, o pilão e a mó, a oralidade e a escrita. Isso não é fragmentação – é riqueza. E reconhecer essa mistura ajuda-nos a fugir das ideias fechadas sobre quem somos.

 

“Cabo Verde não é África”?

 

Essa frase, que gerou alguma polémica, foi muitas vezes mal interpretada. Nunca neguei a nossa africanidade. O que quis dizer é que Cabo Verde não é apenas África – nem o é da mesma forma que os países do continente.

 

Somos um país crioulo, atlântico, com uma história singular. Fomos colonizados num território vazio, e essa condição inicial marcou-nos profundamente. Cabo Verde é África, sim, mas é também Europa, é também Atlântico, é também diáspora. Esta nossa condição mestiça é o que nos define.

 

Re-africanização com um só tom?

 

Após a independência, o Estado cabo-verdiano tentou reafirmar a ligação ao continente africano – algo compreensível no contexto da libertação. Mas muitas vezes isso foi feito de forma rígida, com uma visão única da africanidade, pouco aberta à nossa realidade crioula.

 

Nos currículos escolares, nos símbolos oficiais, nos discursos, a crioulidade foi sendo empurrada para segundo plano. O crioulo, a música, os hábitos do quotidiano foram olhados com desconfiança, como se não fossem dignos de representar o novo país.

 

Hoje, re-africanizar só faz sentido se for num gesto aberto e plural – que valorize também a nossa mestiçagem e assuma a crioulidade como centro da nossa identidade.

 

Memória: a nossa casa comum

 

A morna, os faluchos, os bairros – tudo isso são formas de memória viva. São espaços onde nos reconhecemos. A morna é dor e resistência. Os faluchos ligavam as ilhas. Os bairros ensinam-nos a ser comunidade.

 

A nossa história não é linear. É feita de adaptações, ausências e reinvenções. E a memória – passada de boca em boca – é o fio que nos une. Lembrar é resistir. É não deixar que outros nos digam quem somos.

 

Jovens entre línguas, redes e pertenças

 

Os jovens de hoje vivem entre o crioulo de casa, o português da escola, o inglês da emigração e os mundos digitais das redes sociais. Muitas vezes sentem-se sem mapa.

 

A educação precisa de dar âncoras. Valorizar o crioulo, a morna, os nossos bairros – mas também entender que a identidade se expressa hoje através da música, dos vídeos, das redes. Artistas como Elida Almeida, Jenifer Solidade ou Tranka Fulha mostram como a crioulidade se renova, sem perder a raiz.

 

Educar para a consciência cultural é ensinar a ver a história com verdade. Sem idealizações, sem omissões. Para que os jovens possam dizer, com confiança: “é isto que sou, é daqui que venho”.

 

Palavra final

 

Cabo Verde não é uma identidade fechada. É uma travessia contínua. Feita de memórias, de encontros, de mistura. É nessa crioulidade – vivida com consciência e orgulho – que está a nossa força. E talvez também o nosso futuro.

 

Manuel Brito-Semedo

 

 

PorBrito-Semedo16 jun 2025 22:12