
Silêncio. É assim que deve começar a despedida de quem fez da música um modo de estar no mundo. Morreu Vasco Martins – maestro, compositor, homem discreto e de inquietação serena. Cabo Verde perde um dos nomes centrais da sua criação musical contemporânea.
Durante mais de meio século, Vasco construiu uma obra que aproximou o local do universal. A sua música atravessou géneros e gerações, transformando o som das ilhas em linguagem de vanguarda. Foi um dos primeiros músicos cabo-verdianos a escrever sinfonias e a experimentar a fusão entre tradição popular e composição erudita.
O músico das ilhas e das estrelas
Nascido em 1956, em Queluz, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, chegou ainda criança a São Vicente. A ilha seria a sua primeira escola. Ouvia o vento, o mar, as vozes e os tambores – e desse exercício de escuta nasceu a sua música.
Autodidacta, estudou depois com Fernando Lopes-Graça e no Conservatório Municipal de Noisy-le-Sec, em França, sob a direcção de Henri-Claude Fantapié. Mas o essencial da sua formação vinha das ilhas: da morna e do batuque, das noites de Mindelo, das rádios locais que o iniciaram na arte de improvisar.
O criador indomável
Vasco Martins recusava fronteiras. Compunha sinfonias, explorava música electrónica, escrevia partituras e poemas. O seu percurso – de Vibrações (1979) a Memórias Atlânticas (2006) e às Sinfonias Atlânticas – mostra uma busca constante por novas linguagens.
Foi um dos raros compositores cabo-verdianos a inscrever-se num diálogo internacional sem perder as raízes. As suas obras foram apresentadas em Cabo Verde, Portugal e França, e integraram projectos de cinema, dança e performance. A sua música reflecte um arquipélago em expansão – aberto ao mundo, mas fiel à sua sonoridade própria.
O viajante do imaginário
Nos concertos, Vasco parecia sempre em viagem. Tocava com o olhar recolhido e o corpo entregue ao som. Falava pouco, preferindo deixar que a música dissesse o essencial. Escrevia com o mesmo rigor com que compunha – atento à harmonia, à palavra justa e à escuta.
A sua obra não imitava Cabo Verde: procurava traduzi-lo, encontrar nele uma medida universal. Por isso, é ouvido com a mesma emoção em Mindelo, Lisboa ou Paris.
Um amigo, um mestre, um silêncio
Com Vasco, a conversa era sempre tranquila e densa. Podia começar num tema musical e acabar num pensamento sobre o tempo ou a fé. Dizia: “A música é o que resta quando as palavras se cansam”.
Deixava nos encontros culturais uma presença serena – o olhar manso, os gestos comedidos, a escuta inteira. Não discutia: ouvia. Era um homem simples, com um humor contido e uma curiosidade sem fim.
Numa das visitas ao Calhau, onde vivia, era o dia do seu aniversário. Tocou a tarde inteira, improvisando como quem agradece à vida. Ao final do dia, acompanhou os amigos até um miradouro da Praia Grande. Na despedida, deu-lhes um abraço e perguntou:
“Vocês agora vão-me deixar sozinho?”
Riram-se. “Mas vives sozinho no Calhau!”, respondeu alguém.
Ele sorriu. Hoje, essa frase soa a premonição – a do artista que sabia que a solidão também é parte da criação.”
Noutra tarde, num sábado de sol e vento, realizou-se uma sessão do Arco – tradição de convívio e partilha herdada dos tempos de João Vário, Germano Almeida e Tchalé Figueira. O vento forte levou o grupo ao Calhau. Na casa simples, rodeada por uma pequena horta, montou-se o cenário perfeito: queijo, vinho, conversa e música. Vasco tocou sem pressa, como quem oferece o tempo. Foi uma tarde de amizade e de cumplicidade criadora.
O silêncio que fica
Cabo Verde perde um criador ímpar. A sua música traduziu em som a identidade de um povo que aprendeu, entre o mar e o vento, a fazer da escassez uma forma de beleza.
Mais do que um compositor, Vasco foi um artesão do espírito: disciplinado, livre, fiel à sua visão. Criava com calma e convicção, distante das modas e das pressas.
Deixa um legado vasto: sinfonias, peças corais e electrónicas, composições para cinema e dança. Foi pioneiro na fusão entre a música erudita e a tradição crioula, e um dos poucos a pensar o som das ilhas como linguagem de futuro.
Viveu entre o Mindelo e o cosmos, fiel à vocação de mestre discreto e viajante do invisível. As suas melodias e escritos formam hoje parte da nossa memória colectiva.
Silêncio.
E escutemos.
Ainda é Vasco que toca.
– Manuel Brito-Semedo
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