No livro, ora a morna aparece como afirmação da nossa identidade, ora aparece como construtora dessa mesma identidade. Em termos identitários, a morna já define o povo cabo-verdiano?
Sim. Porque a morna é ouvida por todo o arquipélago. Quando abrange todo o arquipélago é música do arquipélago. Cada país tem a sua música. Quando eu lhe disse que Henderson ao falar da literatura, dos escritos e da fala, toda a gente fala que toda a gente entende crioulo mesmo com variantes, mas é a língua comum. Quando isso acontece, abrange todo o Estado, é a bandeira dessa nação. Não interessa dizer: “não, mas o jornal não chega lá ao fundo”. Toda a gente percebe que nós temos tal coisa sem estudar. Não é preciso pegar naquilo, sabe por informação. Por exemplo, há dias punha-se um problema do tambor. Tambor, sim, São João, não. São coisas diferentes. Todo o arquipélago usa o tambor, mas São João nem todo o arquipélago, apesar do São João ser o santo da Tabanka, mas não é na mesma função.
Comparativamente com outros géneros musicais, qual é o papel que a morna desempenha na definição da nossa identidade?
Como Baltasar Lopes da Silva disse, deve ter havido batuque em todas as ilhas de Cabo Verde mas com o tempo desapareceu. Isso é um dos problemas graves que a morna pode correr na sua protagonização. O que define a nossa identidade é um dos elementos identitários, porque estando alguém na Patagónia, uma amiga minha, ouviu uma morna cantada por Cesária levantou-se da mesa onde estava e foi ao balcão e disse ao empregado: “Esta música é da minha terra.” O que eu quero dizer com isso? A morna é ouvida por qualquer cabo-verdiano, habituado a ouvir morna, identifica que é a morna. Logo, localiza-se um país. Tem um valor simbólico. A identidade, se me perguntares como é o cabo-verdiano, é difícil definir a identidade mas há elementos que trarei à colação para falar do cabo-verdiano.
A morna não é filha do fado nem tão pouco tem suas raízes fincadas na África. Como defende, a morna é produto da Polka. Neste processo de gestação da morna é possível definir a percentagem do input nacional?
Normalmente, a música e estas coisas não se definem por percentagem. A história de Cabo Verde está por fazer, de facto, porque Cabo Verde não foi colonizado só por negros e brancos. Os judeus também estiveram aqui em grande número. São teses modernas. Os judeus fizeram desse espaço um espaço seu. Misturavam-se rabinos e mulatos a representar Cabo Verde nos encontros dos judeus. Na Holanda havia também judeus mulatos. Isto está documentado em trabalhos feitos. Logo, isto quer dizer que é errado partir do princípio de que são dois povos, só duas etnias. Por isso, é difícil identificar. Por exemplo, nós temos aqui gente de Mali e Senegal que eram apanhados pelos negros em lutas e razias e vinham vendê-los aos portugueses na costa. Isto está justificado e documento. Por isso que para os africanos nós somos filhos descendentes de escravos, e sendo descendentes de escravos nós não somos gente. São palestras que nós assistimos na Gulbenkian feitas por experts africanos. O escravo vendido uma vez, nós podemos voltar a África mas nós não somos considerados como filhos da África. Somos filhos de escravos que eles venderam.
Obviamente, há ilhas com maior taxa de produção mornística do que outras. Que ilha de Cabo Verde, em particular, a sua identidade é mais reflectida na morna?
É São Vicente. Antes era a Brava mas São Vicente, há muitos anos, desde 1930. E foi aumentando, e a maior parte dos mornistas que neste momento estão fora, na América, são de São Vicente. Mas encontramos ainda restos de alguns bravenses que estão lamentavelmente a desaparecer. Para fazer o meu trabalho fiz uma viagem pelas comunidades mais representativas. Holanda foi durante a luta, mas desapareceu. América pelo seu estatuto, é um país rico, as pessoas têm trabalho, continuam a viver bem por isso fixaram-se lá. O que nós vamos encontrar são os netos, os filhos dos cabo-verdianos que foram da Brava, do Maio e do Fogo para América. Nós vamos encontrá-los lá a tocar morna. Uns com mais ou menos influência da música americana.
A morna é um produto sociocultural que deve muito à intervenção da mulher, sobretudo durante a sua origem na ilha da Boa Vista. Por que motivo a mulher deixou de ser a protagonista deste género musical?
A morna era feita e cantada pela mulher. Ao chegar a São Vicente, quando a comarca deixou de estar em Ponta do Sol e veio para São Vicente, as mulheres da elite santantonense que estavam em São Vicente fizeram com que as cantadeiras perdessem esse papel. A única pessoa que canta em Cabo Verde em todas as festas é mulher. Isso levou-me a uma investigação e concluí que de facto a mulher que cantasse ou dançasse ou tomasse parte no carnaval era considerada mulher da “má nota”. Isso aconteceu em Cabo Verde. A partir dos anos trinta e quatro para a frente B.Leza passou a cantar e os homens passaram a cantar. As mulheres voltaram outra vez aos lugares da cantiga em 1959 com Helena Ferro, que morreu há dias, da elite santantonense, e minha irmã Titina.
Até que ponto esta obra vai contribuir para a candidatura da morna a património imaterial da humanidade?
Este trabalho traz algumas informações, localiza a morna. Mas é preciso pegar nele, dissecá-lo e procurar as coisas que ele faz referência. Por exemplo, a mora era dançada e é dançada. Eu defino a morna como música, canto e danço. Não havendo dança vai falhar o projecto. Há uma série de coisas que refere e tem que ser procurado. Ajuda um bocado porque informa, mas eu não fiz uma história da morna. A história da morna é muito mais rica. Afloro alguns temas, mas os temas que a morna aborda são variadíssimos. Por que é que eu disse três ilhas importantes? Na Boa Vista a morna é satírica. Ouviam uma polka, um galope, elas arranjavam alguma letra. Improvisavam. Há momentos que na Boa Vista encontramos a morna, o batuque e o Kola San Jon, o que se chamava na altura de coladeira. A coladeira que nós conhecemos actualmente sai de São Vicente nos anos trinta.
No domínio da etnomusicologia pode-se dizer que este livro é mais etnográfico do que musical…
O que me falta aqui é um CD (Compact Disc). Enquanto em Cabo Verde eu posso pegar aquele disco de Humbertona ou aquele que está ali do Tito Paris e fazer uma gravação e meter, em Portugal eu seria processado imediatamente pelos autores das músicas. Eu fiz uma edição limitada com a intenção de ver se consigo levar a minha irmã Titina a cantar a morna à capela porque vão desaparecer e pouca gente conhece estas mornas. Quando me perguntam por que é que não tenho o CD no exame de doutoramento, resposta que eu dou é a que é proibido. Aqui nós gravamos à toa qualquer música sem autorização do dono.
Verifica-se que São Vicente, Brava e Boa Vista e seus mornistas ocupam o lugar central da pesquisa. Quanto à ilha de Santiago, a maior e mais populosa de Cabo Verde, qual foi e tem sido o seu papel na produção mornística?
É fraca. Usei estas três para mostrar como elas têm influência na modificação da morna. Isso é para que as pessoas de Santiago saibam: os negros que tocavam melhor o violão de ouvido em Portugal nos anos 1578 eram os negros de Cabo Verde. Ora, era um século depois da descoberta de Cabo Verde. Todo Cabo Verde é musical.Padre António Vieira falou dos negros da cor de azeviche que tocavam muito bem e ultrapassavam os padres de Portugal. A única diferença que ele anotava era um acidente, porque ele não fala da cor. Falava do acidente da cor. A cor é um acidente, não é nada identitário.
Esta obra “A Morna – O Papel da morna na construção da identidade nacional de Cabo Verde”, como disse, é um trabalho inacabado. O que sugere para o futuro?
Este já cumpriu o seu dever, mostra até que ponto a morna contribuiu para dar alento e personalidade aos cabo-verdianos na América. Mas o que falta fazer é a história. Porque a história da morna eu terei que pegar nos vários cantores que são músicos – os cantores são músicos porque utilizam as suas cordas vocais para produzir música – pegar nas entrevistas que fiz a vários cantores e músicos e transformar isso em texto para contar história. Por exemplo, Manuel D’Novas não está cá porque as mornas dele não serviam para este tipo de trabalho, mas Manuel de Novas é um repórter do quotidiano através da sua música. Aquilo que ele canta não se encontra em nenhum jornal.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 837 de 13 de Dezembro de 2017.