Código Verde, o seu terceiro livro, e o primeiro em Cabo Verde sobre Direito do Ambiente terá apresentação pública no dia 5 de Outubro. O que é que nos quis dizer com esta monumental obra de 817 páginas?
Sim, para mim é o terceiro livro (depois de Ensaios Jurídicos – Entre a Validade-Fundamento e os Desafios Metodológicos, editado em 2013, e Sociedade Civil, Estado de Direito, Economia e Governo Representativo, que publiquei em 2016). Para o Marcelo Araújo é o primeiro. Tenciono publicar, novamente sozinho, um 4.º livro em 2019/2020, cujo material já está, graças a Deus, devidamente trabalhado, abarcando temas de Direito Civil, Penal, Constitucional, Filosofia Jurídica, Metodologia Judiciária, etc.. A minha vocação interdisciplinar irá revelar-se, mais uma vez, nesta obra em andamento, espero eu. A minha intenção de fundo sempre foi esta: contribuir para a edificação de uma cultura jurídica sofisticada e cientificamente ancorada em Cabo Verde. Tem de haver, entre nós, uma renovação dos estudos jurídicos, como condição básica para se resolver a tão falada, mas por vezes incompreendida, “crise da justiça”.
A preocupação ambiental não é nova em Cabo Verde. Podia fazer uma síntese das principais etapas da legislação aplicável, abarcando o período colonial, a independência nacional e a Segunda República?
Sem dúvida. A preocupação ambiental não é nova em Cabo Verde. Não começou em 1975 ou mesmo 1992. Remonta, pelo contrário, ao chamado tempo colonial. Temos de assumir isso sem quaisquer complexos, recusando, aliás, a tentação de uma certa “história de capelinha”, encontradiça em determinados espíritos pseudo-nacionalistas. Na página 49 do livro, tento sumariar os aspectos essenciais desta longa evolução histórica. O Estado colonial não era ecologicamente neutro, de forma alguma. As Ordenações do Reino, editadas há vários séculos, continham proecupações ambientais. Claramente. Cito um texto delicioso do poeta Pedro Cardoso, em que ele elogia abertamente a política ambiental da Metrópole, no tocante à arborização e à plantação de árvores na Província. Os próprios Códigos de Postura municipais vêm dessa época colonial. Regulavam aspectos de civilidade, urbanismo, etc., mas sempre contiveram também, e isso é deveras precioso, preocupações ecológicas. Existe uma boa tradição ambiental em Cabo Verde, que merece ser estudada e desenvolvida, com olhos de ver. Veja, igualmente, os grandes Perímetros Florestais que temos em Cabo Verde (na ilha do Fogo ou em Santo Antão). Foram construídos quando? Em plena era colonial! Isso é fantástico. São factores de atracção turística e de conservação da biodiversidade. No livro, em diálogo com autores cabo-verdianos e não só, estão indicadas as principais etapas de toda essa legislação.Após a independência nacional, em Julho de 1975, também se fizeram coisas boas, positivas. Numa descrição vívida e meditada, tento captar essa espécie de “efervescência” ecológica, cujo foco principal era, talvez, a luta contra a seca no Sahel. Durante os anos 80, na minha infância/adolescência, ouvia sempre, na TVEC, os discursos dos dirigentes políticos de então a esse respeito. Eu próprio plantei muitas árvores nesse período (risos...). Adorava essa actividade, durante as férias. O Partido Único tinha também preocupações ambientais, no quadro teórico, inegavelmente, de um paternalista “Estado-de-polícia” (Polizeistaat), que tenta realizar a felicidade dos súbditos a partir de um plano director, imposto por um chefe omnisciente. É um pouco como a Rússia de Catarina II, encantada com as luzes do progresso. Havia uma certa ideia de “modernização” em curso, que deve ser entendida no âmbito da ideologia então dominante, dita de “reconstrução nacional”. A Constituição de 1980 não tinha, nem de perto nem de longe, um programa ambiental consistente. A chamada I República não era um Estado ecológico.Finalmente, temos o decisivo período pós-1991, culminando na Constituição democrática de 1992, consagradora dos valores de um autêntico Estado de direito democrático. Pela primeira vez na nossa história, o direito ao ambiente é inscrito na Constituição como um direito fundamental do cidadão, ou “liberté publique”, na terminologia francesa, incumbindo ao Estado traçar políticas públicas condizentes com esse estatuto. O direito ao ambiente passa a ser, então, um direito subjectivo pleno, directamente aplicável, vinculando todas as entidades públicas e privadas, exigível, se for necessário, judicialmente. Como escrevo na referida Nota Introdutória, trata-se de uma verdadeira “Revolução Coperniciana”. Acho, todavia, que ainda não interiorizamos, na plenitude, as imensas virtualidades desta principiologia constitucional, por inércia, ou talvez por simples ignorância, não sei ao certo. A Constituição de 1992, refira-se, também consagra os chamados deveres ambientais. Ora, isso é extraordinariamente importante e muitas vezes negligenciado. Só assim se completa a cidadania. Temos o dever fundamental de preservar o ambiente, o ecossistema, e o património cultural, incluindo a obrigação de não atentar – non facere – contra o ambiente e, por outro lado, o dever positivo de impedir os atentados ambientais. Ainda não captamos – e este aspecto é bem evidente, de resto, no nosso quotidiano... – a dupla face exigente dos deveres ambientais. Há um longo trabalho de consciencialização por fazer. Um trabalho necessário de educação ambiental e, claro, de pedagogia cívica.
A Lei de Bases do Ambiente vigente em Cabo Verde ostenta alguns casos assaz curiosos de cópia irreflectida de preceitos normativos que fazem (ou podem fazer) sentido em Portugal, mas que não fazem nenhum sentido em Cabo Verde. Podia dar alguns exemplos?
Sim, a nossa Lei de Bases do Ambiente, apesar de ser um instrumento utilíssimo, é praticamente uma cópia da Lei portuguesa de 1987. Representa um avanço inquestionável, mas ostenta, ao mesmo tempo, algumas falhas inaceitáveis, bem assinaladas no “Código Verde”. Pede-me agora exemplos. Dou-lhe um, mais flagrante: a poluição é vista, na actual LBA, como um valor ecológico a ser protegido! É inacreditável. Chamo a atenção, aqui e ali, para a necessidade de termos uma Política Legislativa mais racional, mais sistemática e axiologicamente bem orientada. Isso não pode ser deixado ao cuidado de legisladores apressados, de conveniência, isto é, de nomótetas imberbes e mal preparados, navegando à vista, carentes, diga-se, de uma profunda visão do conjunto da própria Ciência Jurídica. É um erro grave. Legislar mal é, na verdade, muito pior do que não legislar. Cria vícios perigosos. E sai muito caro à República. Cada centavo do dinheiro público, empregue na actividade legiferante, tem de ser, pois, rigorosamente bem gasto. É uma questão de boa gestão, de uma governança sã, leal e exigente, comprometida com o serviço público.
Escreve que o romance “Chiquinho”, publicado em 1947, é um verdadeiro manifesto ecológico. É uma abordagem bastante original. Como fundamenta a sua tese?
A forma como fui buscar o romance “Chiquinho” mostra que a Literatura é um meio importante, que pode “fertilizar” e enriquecer os estudos jurídicos. Ainda bem que o senhor jornalista aprecia este modus operandi. De resto, eu já tinha feito isso antes, noutros estudos e ensaios. O Direito é uma ciência complexa, que só pode ser compreendida num certo contexto cultural, argumentativo. Temos de redescobrir, o quanto antes, o valor da “estimativa jurídica”, que tanto preocupou, outrora, um Recasens Siches. O Direito não é nunca o somatório dos Boletins Oficiais produzidos num certo território, por um certo poder, mas sobretudo uma certa forma de idear o Homem e a sua concreta posição no Cosmos. Lembro-me de Max Scheler e da sua Antropologia Filosófica. É essencial. Baltasar Lopes da Silva era um escritor fabuloso, preocupado com a dignidade da sua terra e, enfim, da nossa gente honrada. Digo no livro que Chiquinho é um “verdadeiro manifesto ecológico”. É verdade. Qual é o fundamento? – pergunta-me agora. Como escrevi enfaticamente, a obra do pensador de São Nicolau é uma “...descrição viva do ambiente ilhéu, cabo-verdiano”. Já não se trata, pois, de descrever os rios portugueses ou as maravilhas da Metrópole. Nada disso. O ambiente é, doravante, cabo-verdiano, é nosso. Permita-me, novamente, citar as minhas próprias palavras, a propósito da obra-prima de Baltasar Lopes da Silva: “Nela, a terra, o clima, a paisagem e as gentes ressoam com uma clareza admirável”. E continuo, com mais clarificações. Existe ali, de facto, uma grande preocupação com as nossas fragilidades naturais, típicas deste arquipélago martirizado pela pobreza e pela secular estiagem, onde, como saliento, ainda, em linguagem poética, “O rumor do vento leste é implacável e habita, qual Thanatus rancoroso, que brinca por vezes com a concreta felicidade dos homens, o imaginário popular”. Mas leiam o livro, por especial favor! Cada leitor, de acordo com o seu particular código de compreensão, tirará, depois, as suas próprias ilações. Isto é o mais importante.
Muitas vezes a Administração Pública não actua como deve e, em lugar de se comportar como garante da protecção do ambiente, aparece a agir como cúmplice da sua degradação. É uma acusação arrojada. Podia dar pelo menos dois exemplos?
Quanto à sua pergunta, provocadora, sobre a inacção da nossa Administração Pública, em questões ambientais, que não é de hoje, refira-se, remeto-lhe, a si e ao amável leitor, para as considerações feitas no meu Estudo introdutório. Há ali muitas pistas que poderão ser exploradas. Falo, por exemplo, do barulho das motorizadas pela noite dentro, perturbando o sossego dos moradores, da destruição sistemática das praias em Cabo Verde, da ausência de espaços verdes nas nossas queridas cidades, etc.. A cultura ambiental é ainda incipiente, entre nós. Disso ninguém tenha dúvidas. Há um elemento muito positivo que devo, contudo, realçar: este livro, Código Verde, foi inteiramente patrocinado pelo Governo do Dr Ulisses Correia e Silva. É uma prova cabal da sua consciência ecológica e de uma inegável vocação de serviço público. Os bons exemplos devem ser trazidos à praça pública. Não podemos cultivar uma cultura de permanente maldizer, que não reconhece, por miopia, os feitos positivos deste ou daquele. Amartya Sen, o grande pensador indiano, diz uma coisa preciosa: quando os líderes dão bons exemplos, a sociedade se endireita.
Escreve no seu livro que as primeiras leis ecológicas, feitas com assinalável rigor técnico, foram editadas precisamente pelo III Reich alemão, denotando uma preocupação pioneira na Europa contemporânea. Como explica este paradoxo?
(Risos...). É deveras intrigante o facto das primeiras leis ecológicas terem surgido na Alemanha nazi. Convivendo com a barbárie mais extrema, com os campos de concentração, com o militarismo desalmado, etc.. E, segundo consta, eram leis tecnicamente avançadas, pioneiras em toda a Europa civilizada. Não sei como explicar um tal paradoxo! A própria vida humana é, muitas vezes, um paradoxo, cheia de contrastes, mistérios e aspectos que não compreendemos. Quando vejo, hoje, certas causas “fracturantes” e seus apóstolos enfurecidos, desprezando a sensibilidade humana mais elementar, penso sempre no absurdo hitleriano e nas suas consequências. Estamos perante o mito do eterno retorno?!
Se não me falha a memória, a Alemanha foi o primeiro país a ter um partido ecologista (Os Verdes) com assento parlamentar. Podia traçar o processo alemão a começar pelo Romantismo, passando por Husserl com a sua crítica à tecnicização (Technisierung) do Lebenswelt (mundo em que vivemos) sob o aspecto da fenomenologia “Zurück zu den Sachen Selbst” e Heidegger “a ciência não pensa” que escreve que o pensar científico acaba, por meio do pensar calculador, ocasionando o desenraizamento do homem de seu mundo.
De facto, o primeiro partido verde (Die Grünen) surgiu na Alemanha, em 1979. É um país extraordinário. Petra Kelly foi um nome carismático desse período. A questão ambiental era, porém, explorada ao lado de outros temas candentes, como o desarmamento nuclear, a justiça social, etc.. Havia um certo utopismo no ar, à espera de um reluzente “mundo novo”. Acho isso tudo um exagero. Não devemos pedir à Ecologia e ao Direito Ambiental coisas que eles não nos podem dar. A minha visão é mais moderada e, creio eu, mais sensata e praticável. Fala do Romantismo. Tem razão. Sabemos que o Romantismo, que é um movimento cultural complexo e com várias dimensões, indo da Filosofia à Arquitectura, passando pela Música e Literatura, germinou sobretudo na Inglaterra (recordemos, por ex., a reconstrução do Palácio do Parlamento em Westminster, a partir de 1840, seguindo a estética neogótica) e Alemanha. Chega a Portugal muito mais tarde. O Romantismo valoriza o sentimento, a natureza, o exotismo, o passado imemorial. Combate o progresso e a revolução industrial. Há nisso tudo uma mística do “regresso às origens”, uma certa revolta contra a técnica, e contra a tal “razão calculadora”. Husserl e Heidegger compreenderam muito bem a fraqueza de uma ciência sem alma. Uma técnica sem valores pode ser, deveras, muito perigosa. É assim que eu leio estes poderosos avisos teóricos à navegação. Mas a técnica trouxe-nos, por outro lado, imensos benefícios. Na Medicina, na Agricultura, no grau de conforto que usufruímos, nos transportes, no lazer, etc., etc.. Faz parte da nossa Civilização e do nosso ideal de dignidade. E assim voltamos ao sapientíssimo Aristóteles: a virtude está no meio. O “habitar poeticamente a terra” não pode implicar o regresso puro e simples do “bom selvagem” de Rousseau. Seria um desastre humano.
A obra é escrita em co-autoria com Marcelo Araújo. Como foi a experiência?
A parceria foi interessante. Marcelo Araújo fez alguns comentários técnicos e ajudou a arrumar o índice e a legislação do sector. Foi muito importante. Da minha parte, além de ter feito o Estudo de enquadramento geral, tomei conta da sistematização de todo o material, harmonizando as soluções, comentando, usando da minha experiência nestas lides, e da revisão científica e estilística das partes essenciais do livro. Praticamente tudo neste livro tem a minha impressão digital, mesmo nas partes não visíveis.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.