Palmas para a “Mãos de Ouro”

PorChissana Magalhães,13 jan 2019 7:33

​A 06 de Janeiro de 1919 nascia Tututa (Epifânia de Freitas Silva Ramos), a pianista que se tornou lenda por contornar as convenções da sua época ao tocar em espaços públicos, mas também pela mestria das suas composições.

Familiares e entidades públicas preparam homenagens para assinalar o centenário da mulher que abriu mão de uma carreira que poderia tê-la levado aos palcos internacionais para se dedicar à família. O piano, porém, faria parte da sua vida até ao fim.

“Quando estou agarrada ao piano, parece que estou no céu, lugar onde nunca estive”, terá dito Dona Tututa em certa ocasião. Tal era o seu amor pela música, pelo instrumento ao qual devotou o seu talento, ela que desde criança aprendera a tocar vários outros instrumentos.

Tututa Évora, como também era conhecida, foi a primeira e até aqui única mulher cabo-verdiana a escolher o piano como profissão e a compor para este instrumento. As músicas que criou – interpretadas por nomes maiores da música cabo-verdiana como Césaria Évora, Bana e Humbertona – estão agora compiladas num livro organizado pela filha, Maria de Lourdes Évora Pereira.

“Tututa – Composições” deriva de um projecto maior, revela Lourdes Pereira em conversa com o Expresso das Ilhas.

“O projecto que tenho, há muitos anos já, é de um livro com as composições de toda a família. A família da minha mãe era toda ela de gente que fazia música e a ideia era reunir nesse livro todo esse espólio. Mas com o aproximar do centenário do nascimento da minha mãe pensei em fazer algo com as composições dela. Era para ser um caderno com algumas letras e partituras para piano mas alguém me sugeriu fazer algo mais e assim o caderno passou a livro”, explica.

O livro, resultado de dois meses de intenso trabalho de organização, com parceria editorial da SOCA e em cujo conteúdo contribuíram contactos na diáspora, reúne em 130 páginas letras e partituras – organizadas em letra e cifra, voz e cifra, piano e voz – fotografias e testemunhos de algumas figuras que privaram com a pianista ou conheciam de perto a sua obra, como Vasco Martins, Leão Lopes, entre outros. A abrir, uma nota biográfica assinada pela própria Maria de Lourdes Évora Pereira, que durante a conversa deixa transparecer a admiração e o respeito que tem pelo legado da mãe.

“Na contracapa do livro há uma frase dela – “Palmas… Toco para ouvir palmas!” – e que mostra bem como ela era. Ela nunca tocou por dinheiro, para ganhar dinheiro. Tocava pelo prazer”, diz-nos mais adiante a nossa entrevistada, fazendo questão de realçar esse aspecto do percurso de Tututa Évora.

Já a capa do livro é uma fotografia de Zé Pereira ao retrato a óleo da artista pintado por Domingos Luísa, e que no hall de entrada dá as boas vindas aos que visitarem a casa de Lourdes Pereira, na cidade da Praia.

A vontade da autora era que o livro fosse apresentado na data exacta do centenário do nascimento da mãe porém, a agenda de actividades comemorativas ditou a data de 23 de Janeiro como a mais propícia. Será na ilha do Sal, onde Dona Tututa viveu a maior parte da sua vida, em evento organizado pela edilidade. Na mesma ocasião deverá ser inaugurado um busto a representar a compositora, iniciativa do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas.

Homenagens em vida

Nunca faltaram reconhecimentos a esta que é uma das figuras maiúsculas da música e da cultura nacional. Dona Tututa recebeu em vida várias homenagens, de entidades públicas e de particulares.

Por ocasião do seu aniversário de 90 anos a sua ilha natal, São Vicente, festejou com pompa e circunstância a sua vida e obra.

“Em 2009, um grupo de amigos, artistas e admiradores decide homenagear a pianista pelos seus 90 anos; constituem uma Comissão Organizadora e reclamam a sua presença na Ilha natal para um programa cultural que durou dez dias!”, escreve a filha na nota biográfica inserida no livro.

A Câmara Municipal de São Vicente, cujo Dia do Município também se assinala em Janeiro (22), associou o 90.º aniversário de Tututa Évora ao seu programa de actividades prestando-lhe homenagem numa cerimónia no Auditório Jotamont.

Antes, em 2006, é criada na ilha do Sal a Escola Municipal de Artes Tututa, iniciativa da autarquia local que desde então tem formado novas gerações de artistas e promovido, sobretudo através de concertos, o legado musical da autora de “Grito de dor”, “Sentimento”, ou “Vida torturod”.

Outra honra que lhe foi atribuída foi, em 2012, o convite do então Ministro da Cultura, Mário Lúcio Sousa, para integrar a Comissão de Honra para a candidatura da Morna a Património Mundial.

Epifânia de Freitas Silva Ramos nasceu em Mindelo, no seio de uma família cujo lar tinha banda sonora quase permanente. O pai era António da Silva Ramos, comerciante bem-sucedido da ilha conhecido por Antone Tchitche, ele próprio músico e compositor, destacando-se entre as suas composições o tema “Abissínia”.

A penúltima dos 9 filhos do casal António da Silva Ramos e Eugénia Maria de Freitas Silva Ramos, Tututa – que no meio familiar era Tutu – conviveu desde muito cedo com a variedade de instrumentos musicais existentes na casa da família e, como os irmãos, aprendeu a tocar vários deles, como violão e violino, para além do piano.

“Formavam uma verdadeira orquestra, razão pela qual a casa da família Silva Ramos seria conhecida por a “Casa dos Rouxinóis””, aponta a filha e biógrafa.

A educação musical formal seria iniciada em 1932, aos 12 anos, quando manifestou vontade de estudar música. Frequentou então durante três anos a escola de José Alves Reis. Foi o suficiente para incutir de vez a paixão pelo piano e fazê-la sonhar com uma carreira de pianista e compositora. Impedida pelas circunstâncias de prosseguir a sua formação musical fora do país, a jovem Tututa lança-se então como pianista, desafiando as convenções da época ao tocar em espaços públicos como o Grémio ou o Café Royal.

“Acompanhada pelo irmão Tchuff e Lilinha ao violão, Mochin de Monte ao violino e Cunote em jazz, formam a então chamada “Orquestra Tututa” nos idos anos 30. Os anos 40/50 são áureos; os concertos quase diários no Café Royal - Rua de Lisboa, fazem “vibrar” a cidade do Mindelo, assim como o Grémio, o Palácio e as salas de espectáculo onde os concertos se sucedem. As noites do Café Royal ficaram na história da ilha e ultrapassaram fronteiras, com a passagem dos barcos pelo Porto Grande – a tripulação assistia encantada, aos concertos da Tututa e seu conjunto”, relata Lourdes Pereira.

O prenúncio de uma fulgurante carreira, inclusive a nível internacional, acabaria mesmo por sucumbir às normas sociais: ao casar-se, em inícios da década de 50, Tututa abre mão da carreira para formar família. Muda-se para a ilha do Sal, e os filhos começam a chegar. Ao todo foram 10 partos, dois deles de gémeos. Os filhos também foram estímulo para que continuasse a tocar. Ao piano, compunha para eles canções de embalar.

Como esposa e mãe de família Dona Tututa passa a tocar em casa, que na década de 60 se converteu numa espécie de centro cultural da ilha, tal a quantidade de artistas que ali chegavam para tocatinas e outras actividades culturais.

“Tututa recusa os convites que recebe nessa época porque não pode ausentar-se; também não pode aceitar o convite para professora de música na ilha de Santiago; é professora, mas dando aulas de piano em sua própria casa, na ilha do Sal”.

Santiago a acolheria mais tarde, já na recta final da sua vida. Ali viveu por oito anos, durante os quais chegou a tocar em alguns concertos. Aliás, sua última actuação em público terá sido durante o concerto promovido pela cantora Isa Pereira, em 2013, por ocasião do Dia da Mulher, no átrio do centro Praia Shopping. Tinha então 94 anos.

É também desse ano o documentário “Dona Tututa”, do realizador português João Alves da Veiga, que ganhou o prémio de melhor filme no “Cabo Verde International Film Festival”, na ilha do Sal.

Dona Tututa viria a falecer a 26 de Janeiro de 2014, na ilha onde viveu a maior parte da sua vida, poucos dias depois de celebrar os seus 95 anos rodeada de familiares e amigos.

“Tocou com os colegas músicos, dançou com todos os presentes (fez questão disso), com a alegria de sempre, sentia-se feliz…”.

Um disco herança

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ona de uma grande quantidade de composições – algumas delas perdidas por não terem sido registadas – Tututa Évora gravou apenas um disco. A oportunidade surgiu a convite de Bana e foi nos Estados Unidos da América que gravou, com o guitarrista Taninho, o long play (LP) “Rapsódia Tututa & Taninho”. O álbum seria lançado em 1967, quando tinha 47 anos.

A gravação do disco trouxe algum impulso internacional à sua carreira, fazendo nessa altura alguns concertos em países como Guiné-Bissau, Senegal, Portugal, França e Estados Unidos.

Em 1995 “Rapsódia Tututa & Taninho” seria reeditado em formato compact disc (CD), contribuindo para a preservação do registo áudio de sucessos como “Esse Odjinho é di Meu”, “Reza pa mi nha cretcheu” e “Minduca”.

Com formação em piano clássico, Dona Tututa conjugou de forma exímia este instrumento com a música tradicional cabo-verdiana.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Chissana Magalhães,13 jan 2019 7:33

Editado porChissana Magalhães  em  14 jan 2019 9:07

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