Há um ambiente invulgar. À porta, o burburinho das noites do Mindelact é substituído por um silêncio formal, uma fila que serpenteia todo o Centro Cultural do Mindelo (CCM), gente separada como recomenda o protocolo.
Na sala, o ambiente é estéril: cadeiras vazias e rostos tapados com máscaras. A arte precisa de público, o teatro vive dele. Talvez por uma noite, porém, a invulgaridade de uma sala meio vazia encerre um qualquer sentido artístico, perante aquilo que acontece em palco.
“O Cheiro dos Velhos” é um daqueles momentos teatrais que tem a capacidade de nos deixar inquietos, porque constrói toda uma narrativa - que se projecta na plateia - onde não nos revemos, necessariamente, mas perante a qual nos questionamos, absolutamente.
Há um funcionário público que molha os pés numa praia e há uma velha – que é uma marioneta – que lhe rouba os sapatos. E há (há?), descobrimos mais tarde, uma história em comum. Uma história de dominação, de poder de maldade e crueldade, de perversão.
À procura de uma “confissão sincera”, o enredo constrói-se entre a verdade e a mentira, sem que, deliberadamente, se chegue a perceber onde acaba uma e começa a outra. Não procurar respostas, deixando-as para o público será, por ventura, um dos principais méritos da produção sessenta do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo (GTCCPM), em parceria com o Teatro de Marionetas do Porto. Uma surrealidade que se desenvolve em cena e fora dela. Bem vistas as coisas, nada daquilo é ‘normal’. Mas o que é normal nestes tempos que vivemos?
Encenado por João Branco, “O Cheiro dos Velhos”, que estreou em Outubro, em Portugal, no Festival Internacional de Marionetas do Porto, recorda-nos que Janaína Alves é uma das mais versáteis actrizes do actual movimento teatral cabo-verdiano. De igual modo, confirma a poderosa voz de Lisa Reis – feita narradora, carregada de um sarcasmo quase doentio, oferecendo aos espectadores breves instantes para regressar à superfície. Mas aquilo que mais importa registar é a maturidade de um dos principais nomes da dramaturgia crioula, Caplan Neves (que também sobe ao palco, como ‘funcionário público), ao assinar com mestria um texto de grande complexidade literária.
Dias 2 e 3 de Dezembro, o público da Praia poderá assistir a “O Cheiro dos Velhos”, no âmbito da programação do Tearti - Festival do Teatro do Atlântico. Lá para meados de Dezembro, a peça regressará ao auditório do CCM, em São Vicente.
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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 991 de 25 de Novembro de 2020.