A Rosa de Porcelana Editora acaba de publicar o livro Cesária Évora de Elżbieta Sieradzińska, editado inicialmente em polaco em 2015. A tradução é de Włodzimierz J. Szymaniak coadjuvado por Manuel Brito-Semedo. Segue um extracto em jeito de pré-publicação.
DIA ÚLTIMO
– Senhora, senhora!
Uma mão húmida de suor toca suavemente a minha cabeça.
– Senhora, não deve ficar assim.
Levanto o meu olhar. O homem já não é jovem, mas aqui a primeira impressão pode enganar; cabelo curto, encaracolado, um boné meio sujo e um fato-de-macaco aberto no pescoço com uma inscrição esbranquiçada “Câmara Municipal”.
– O meio-dia está quase a chegar, o sol é forte, e a senhora está sentada aqui sem proteção.
O meu mutismo visivelmente o incomoda. Acha que não entendo o que está a dizer. Levanta o dedo indicador em direção ao céu, depois abre a mão em jeito de paraquedas e deixa cair sobre a cabeça.
– O sol! – Repete. – Sol faz mal. Cabeça.
– Sim, eu sei, conheço bem o vosso sol. Não me faz mal, mas agradeço sinceramente.
– A senhora fala crioulo. – É mais uma constatação que uma pergunta e a voz do homem não indica nem curiosidade nem admiração, antes uma nota de compaixão.
– Falo, ou esforço-me por falar. O meu olhar foge. Cai um silêncio embaraçador que não me atrevo a interromper.
– Amiga? – O homem não desiste e vira-se em direção ao jazigo branco e baixo.
– Sim, amiga, mas sinceramente… o senhor provavelmente não vai entender…
– Entendo, sim, senhora…
Acena com a cabeça olhando algures por cima da minha cabeça para paisagem estranha formada por retângulos de casas cinzentas, dos subúrbios longínquos do Mindelo. A paisagem assemelha-se à uma aquarela não acabada com esboço feito a lápis. O quadro vibra no ar quente de julho.
– Lembro-me da senhora – continua. – Veio aqui há dois anos, imediatamente após o enterro, e no ano passado também.
– Agora vim para escrever um livro sobre ela.
– Em português?
– Não – sorrio – em polaco.
– Então, não vou poder ler. Mas tá dret. A nossa Cize merece. Já está quase o meio-dia, a senhora vai ou não vai embora?
– Vou ficar mais um pouco.
O homem coloca o boné para trás da cabeça, mexe com os dedos no cabelo crespo e afinal puxa o boné mais para a testa. Debruça-se outra vez sobre mim para tocar suavemente no meu ombro.
– Compreendo, mas não demore muito tempo porque pode adoecer. Tchau.
O sol implacável, uma bola ardente e de contornos diluídos como nos quadros de Van Gogh, está muito alto.
“ – E se um dia tiver de partir? – Perguntou Christopher apertando a mão do ursinho.
– Não é nada grave – respondeu o ursinho… – Vou ficar aqui à tua espera.” (pp. 408-409).
O funcionário da Câmara Municipal de São Vicente – Em português? – Não – sorrio – em polaco. Então, não vou poder ler. Mas tá dret. A nossa Cize merece. – e tantos outros admiradores da nossa Cize, já podem ler o livro Cesária Évora em Português e, eventualmente, mais tarde, em francês e em inglês.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 994 de 16 de Dezembro de 2020.