Porto Memória : O Cheiro dos Velhos, Dramaturgia de Caplan Neves

PorBrito-Semedo,10 jan 2021 12:27

Nos anos 40/50, o teatro teve uma forte pujança em São Vicente com vários grupos cénicos, do Grémio Desportivo Castilho (Conjunto Cénico Castilhano), do Grémio Desportivo Amarante e da Associação Académica do Mindelo (cf. O Teatro é uma Paixão. A Vida é uma Emoção, de Valdemar Pereira, 2010).

Nos meados dos anos 70/80, com o advento da independência nacional, houve um ressurgimento, particularmente em Santiago, com a criação do grupo teatral “Korda Kaoberdi”.

Nos inícios de 90 foi inaugurada uma nova era, a partir de São Vicente, com a criação de Cursos de Iniciação Teatral e do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo (GTCCPM), de que João Branco é encenador e director artístico tendo já encenado e produzido 60 espetáculos teatrais, com textos de autores cabo-verdianos e estrangeiros.

Apesar dessa tradição, poucos desses textos escritos para serem encenados chegaram a ser editados em livro. Daí que a publicação de uma obra de dramaturgia em Cabo Verde seja “sempre um acontecimento” porque, conforme João Branco, “o teatro, enquanto género literário, não é uma grande aposta de editoras e não há muito mercado para ele”.

Assim, a edição de O Cheiro dos Velhos de Caplan Neves, o livro vencedor do 2.º Concurso Nacional de Dramaturgia do Centro Cultural Português 2019-2020, e sua encenação como peça de teatro, é um duplo “acontecimento”.

A Dramaturgia

A Dramaturgia é, por definição, o ofício de elaborar um texto com o objetivo de o transportar para os palcos, apresentando diante de um público as ideias contidas nessa obra. A palavra drama vem do grego e significa acção. Desse modo, o texto dramatúrgico é aquele que é escrito especificamente para representar a acção. O cerne da acção é o conflito. Toda a acção em cena depende do conflito e da maneira como as diferentes personagens agem para atingir os seus diferentes objetivos.

Convido-vos a revisitar o caminho percorrido e as publicações de dramaturgia dadas à estampa em Cabo Verde:

Descarado, Donaldo Macedo, Taunton, Massachusetts (1979);

Quem é quem, Maria José, pseudónimo de Flávio Carvalho Moreira (Santa Catarina, 1961 – EUA, 1993), Praia, ICL (1988). Obra premiada no Concurso Literário X Aniversário (1985) na modalidade Teatro e patrocinada no âmbito do 50º aniversário da revista “Claridade”;

Matilde, Viage di Distino, Artur Vieira, Rio de Janeiro (1991);

Virgens Loucas, Cândido Ferreira, Lisboa, Cenas Lusófonas (2000);

Vai-te treinando desde já, Mesquitela Lima, peça de teatro de João Cleófas Martins (Nhô Djunga), Lisboa, Nova Veja (2004);

Salon, Mário Lúcio, Praia-Mindelo, Centro Cuçltural Português (2004);

Colecção Dramaturgia Nacional – três volumes de colectâneas de peças de Mário Lúcio Sousa (2004), Espírito Santo da Silva (2006) e Caplan Neves (2015), Mindelo, Associação Mindelact;

Eugénio Tavares. Palco de dor e de amor, Artur Vieira, Praia, IBNL (2007);

Escritos sobre teatro, Kwame Kondé, Praia, Artiletra (2010). O livro incide particularmente sobre o período de existência do grupo teatral “Korda Kaoberdi” (1975-1982) e inclui dois dos textos sobre os quais seria montado o espectáculo “Rai di Tabanka” (1980);

Tudojunto Sepa rado, Lisa Reis, vencedora do 1.º Concurso Nacional de Dramaturgia do Centro Cultural Português 2017-2018 (2018);

O que faço com isto? – Textos para teatro, Valódia Monteiro, edição de autor (2020), lançado em Novembro último, enquadrado no Festival Internacional de Teatro do Mindelo – Mindelact;

O Cheiro dos Velhos, Caplan Neves, vencedor do 2.º Concurso Nacional de Dramaturgia do Centro Cultural Português 2019-2020 (2020).

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De se lamentar a falta de políticas públicas para a área do livro e da promoção da leitura que vem, lamentavelmente, desde 2011. Igualmente, é de se relevar esta iniciativa do Concurso Nacional de Dramaturgia do Centro Cultural Português, estimulando a produção e a publicação desse género literário, ainda que em edições reduzidas de 300 e 200 exemplares.

O Cheiro dos Velhos

Na obra dramatúrgica O Cheiro dos Velhos, a acção decorre do conflito entre a realidade e a ficção, entre a verdade e a mentira, entre o odor da covardia e o cheiro dos velhos, uma metáfora sobre o cheiro mofo do velho e caduco Estado burocrático, encarnada por Osvaldo Pio – por sinal, nada piedoso – funcionário público, e A Velha, utente para a qual não se tem respeito nenhum, já que sem nome e sem identidade.

O texto/peça termina num dilema para os leitores/espectadores – deixar ou não deixar morrer esse funcionário público nas chamas:

”Votem em consciência! Não permitam que meras narrativas moldem o mundo em que vivemos. Votem pela verdade! Votem em mim!” – A Velha e Osvaldo Pio

O Cheiro dos Velhos de Caplan Neves é um texto de grande complexidade literária e uma história para ler, ver e ouvir.

E a peça que se viu foi um momento alto em que a representação juntou as duas linguagens – escrita e arte performativa – e reuniu o dramaturgo e o actor, fundindo-os. 

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Entre as letras, um porto de abrigo

“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos

A memória bravia lança o leme:

Recordar é preciso.

O movimento vaivém nas águas-lembranças

dos meus marejados olhos transborda-me a vida,

salgando-me o rosto e o gosto”

– Conceição Evaristo, escritora e poeta brasileira,

in Cadernos Negros, vol. 15

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 997 de 6 de Janeiro de 2021. 

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Autoria:Brito-Semedo,10 jan 2021 12:27

Editado porJorge Montezinho  em  10 out 2021 23:21

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