O seu livro tem duas notas introdutórias, sendo que a mais antiga data de 2007. Então, quanto tempo demorou a escrever esta monografia?
Rigorosamente, este livro foi escrito no último ano e meio. Mas como tinha o apontamento de 2007, achei que poderia servir para o objectivo presente. Dito de outra forma, de algum modo o livro está em preparação desde 1987. Há-de ver lá as datas referidas, designadamente as fotos com as respectivas legendas, mas tudo isso ficou guardado na gaveta até que no último ano e meio, aproximando-se o primeiro centenário do nascimento dele, que foi a 15 de Dezembro de 2019, resolvi tirar o trabalho da gaveta.
O livro de certa forma marca o seu próprio percurso profissional enquanto Director Geral da Animação Cultural e presidente da Câmara municipal da Boa Vista.
Sim, enquanto Director Geral da Animação Cultural fiz o levantamento das versões fidedignas das composições de Mané Razuedje e do relato biográfico dele que está muito ligado à sua produção musical. Nessa altura preparava-se o I Encontro de Música Nacional realizado na Praia, em 1988 [até agora o único]. Encontrei-me com ele em São Vicente nessa altura e quatro depois, enquanto presidente da Câmara Municipal da Boa Vista, ele foi homenageado pela autarquia. Não sei se poderia chamar ao livro um estudo de caso, mas para mim, de algum modo o é, porque é um caso, e à volta desse caso, faço um estudo com alguns itens que passo a enumerar. Primeiro, contextualiza-se a biografia dele. Mané Razuedje viveu 42 anos na Boa Vista e 35 em São Vicente. Teve uma vida um pouco agitada, num contexto de muita pobreza e de alguma relativa criatividade. Sempre me pareceu que era um pouco injusto que esse compositor ficasse no anonimato apenas porque ele não tem um estatuto de um B.Léza, de um Eugénio Tavares ou de um Manuel d’Novas. É que o nosso mundo musical está cheio de figuras pequenas e interessantes, como se poderá constatar neste trabalho, não porque fui eu a escrevê-lo, mas pelos dados que lá constam, relatados uns e contatados por outros.
Que outros itens traz o seu estudo?
Como referi, o livro coloca primeiro a biografia Mané Razuedje, depois contextualiza-o na música cabo-verdiana, contextualiza-o igualmente na música boa-vistense, portanto numa certa tradição que ele herdou, num certo testemunho que ele passa; depois vem a transcrição poética das composições; a seguir vem a transcrição das composições na pauta musical; a seguir vem a contextualização psico-social de cada uma das composições; vem a seguir uma espécie de leitura poética e por fim considerações de carácter geral versando várias questões sobre Boa Vista e outras que se cruzam com o trovador.
As biografias existentes sobre esses casos abordam, via de regra, compositores maiores da música cabo-verdiana. O que é que o motivou a estudar um compositor desconhecido ou pelo menos quase anónimo?
Exactamente porque na sua extrema simplicidade, pois trata-se de um compositor que não chegou a completar sequer a primeira classe da instrução primária, não porque não tivesse vontade, mas porque os condicionalismos da vida assim o ditaram. No entanto, ele é de uma rara intuição, de uma rara capacidade de interpretar a realidade à volta e de lhe dar forma numa linguagem extremamente simples e ao mesmo tempo profunda. Daí que ele me tenha cativado, menos por ser patrício, embora desde os meus cinco anos que ouvia os meus e todo o ambiente falando do Mané Razuedje, até que depois o conheci em pessoa, teria eu sete anos, num famoso baile na Povoação Velha, protagonizado por Luís Rendall que conviveu muito com ele próprio, com o Virgílio Pereira e outros músicos da nata da Boa Vista naquele tempo. Eu tinha apenas sete anos e por curiosidade lá fui àquele encontro e impressionou-me a performance daquele ambiente na Povoação Velha. A partir daí, fui convivendo com este nome até que o pude conhecer sobretudo através da sua obra-prima, ‘Avezinha de Rapina’, e de outras composições. Então pensei, ‘alto aí, este senhor talvez mereça ser recordado’.
O seu livro é sobre Mané Razuedje, mas acaba por oferecer também importantes reflexões sobre a historiografia musical cabo-verdiana.
Sim, intencionalmente coloquei-o no panorama musical cabo-verdiano e na Boa Vista e abordo muitas outras questões que se cruzam com a temática seja da Morna, que é um estudo de caso em que meto alguma colherada na Morna, enquanto género literário, e sobretudo nos vários contextos. É que, através das composições deste autor, vê-se que a história da vida dele coincide em boa parte com a história da ilha, em momentos muito críticos e difíceis, como foram os anos quarenta, onde, no entanto, havia igualmente espaço para a criação cultural e para a diversão.
A obra-prima de Mané Razuedje é seguramente ‘Avezinha de Rapina’, imortalizada pela voz de Ildo Lobo. Parece uma letra inocente, mas esconde-se nela uma sátira mordaz. Podia fazer-nos uma leitura poética da composição?
O ambiente da morna acontece em João Galego. Um rapaz de João Galego enamora-se de uma moça de Espingueira, mas esta depois encontra um outro. E ‘dá na calçada o namorado’. ‘Dá na calçada’ significa na Boa Vista trair. Os rapazes da Povoação ficaram indignados. Então sugeriram ao Mané Razuedje que já tinha nome que compusesse uma morna de arromba e levaram-lhe uma proposta de argumentos. Ele não gostou, pois achou-a demasiadamente violenta. Disse ‘não, vou eu formar a letra’. ‘Formar letra’ é uma expressão que o próprio Mané Razuedje usava para descrever o processo como ele formava os versos. Então, ele disse aos rapazes que ele ia formar a letra à sua maneira e fez uma coisa mais suave que ainda sim é o que é. Portanto, é uma sátira mordaz: Avezinha de Rapina, já tens campos largos para voar, portanto, soltaste-te das minha amarras, agora arranjaste um outro, para ires encalhar na Rocha do Abrolhal (Rotcha di brudjal). Abrolhal é uma rocha que fica a Noroeste de João Galego. Trata-se do lugar onde as cenas do encontro se davam. A letra segue: ‘devias-te lembrar que seis anos não são seis dias/ para me dares nesta grande calçada/ Já não tenho dente para comer carne/ carne está na boca do lobo’. Está a ver a capacidade imagética de um homem que não chegou sequer a completar a primeira classe. Segue a letra: ‘Eu não tenho culpa/ culpado é Ribeira da Fonte’. Ribeira da Fonte é uma ribeira que existe aí pelos lados de Espingueira numa zona calcária, cujas margens lembram de facto um rendilhado, seja pelo ambiente calcário erodido pelo vento e a maresia, seja porque ali crescem junças que por altura das chuvas ficam pendentes dos bordos, dando a impressão de um cortinado. Portanto, todo esse cenário foi aproveitado por ele: sejam os rebordos erodidos que lembram um cortinado, sejam as junças. Até o mar se associou de forma cósmica à sua dor, chorando na areia. ‘Kem quê culpada ê ribeira de fonte/ Lá ê ki tem bons campos di madjada/ Lá ê ki tem bons quartos cortinados/ Djam tem sodade di spinguera/ Morada di nha perfumada/ Undê q’um ba mata nha siguera/ Ami na praia derrubado/ T’uvi ondas di mar ta tchora n’areia’. Em grandes pinceladas, mas sem aprofundar o que está no meu livro e sem outros pormenores…
O seu livro recupera também outros compositores boa-vistenses como António Lima (Djidjungo) que estão relativamente cobertos pelo manto do esquecimento.
O Djidjungo é o autor da morna ’27 de Setembro’ [Dia da Morna na Boa Vista]. Mas ele não tem só ’27 de Setembro’, tem muitas outras que são mornas de intervenção pontual. Esta designadamente é uma morna directamente apontada ao sistema colonial, em que ele que já tinha prestado o serviço militar, regressa à ilha, apaixona-se por uma moça em quem o administrador do concelho também tinha olhos e este por esta razão determina que ele volte para a tropa e foram buscá-lo no seu posto de trabalho. Só que ele não chegou efectivamente a ir para a tropa, porque depois a coisa se desfez. Mas o argumento era este. Esta morna ’27 de Setembro’ alinha-se perfeitamente com as injustiças de todo o sistema colonial.
Escreveu que a música da Boa Vista é exclusivamente de cariz popular e que este facto “muito” terá contribuído para a afirmação de Eugénio Tavares que a morna na Boa Vista planou baixo, rebuscando os ridículos de cada drama do amor e cantando o perfil caricatural de cada episódio grotesco. Não passou disso?
Em parte sim, e em parte não. Em parte sim, na medida em que na Boa Vista, como vimos dizendo, as composições têm a ver com os flagrantes da vida real. São ridicularizados, mas que não tenha passado disso não é totalmente verdade. É facto que na Boa Vista não temos poetas de grandes laborações intelectuais sobre um argumento da morna. Mas na linguagem simples, ele diz coisas profundas. É isso. Não há grande laboração literária, mas o essencial está lá que é a sua versejadora poética, traduzindo uma percepção e sentimentos, de forma simples, mas profunda. Por outro lado, não concordo completamente com Eugénio Tavares, porque há composições também na Boa Vista de lírica pura. O próprio Mané Razuedje tem uma morna que é ‘Nha Titina’ que é isso: ali não há crítica mordaz, mas uma laboração figurativa, com imagética, com expressão.
A morna foi declarada património mundial da humanidade? Que quota-parte cabe a Boa Vista neste processo?
Quando se fala da morna, deve estar incluído no conceito todo o tipo de morna que se produziu. Evidentemente que B.Léza e outros deram-lhe aquele status elevado, mas com as glórias da morna elevadas a património mundial, onde é que ficam os nossos compositores ditos menores, ou pequenos, mas que formam a grande maioria? E que também cantaram coisas sublimes? Portanto, eu penso que eles estão ali incluídos e seria de toda a injustiça que desse ror eles não fizessem parte. Que quota-parte cabe a Boa Vista? Bom, enquanto não se encontrar teoria melhor, há uma hipótese de trabalho segundo a qual a morna nasceu na Boa Vista. De facto, as primeiras mornas estão reproduzidas em ambiente de trabalho. Se for verdade aquilo que escreve Bonnafoux, a morna nasceu na boca das mulheres a caminho da lenha, a caminho da exploração do sal, a caminho dos combustíveis para a cachupa de cada dia, à beira mar a ajudar os homens nas lides da pesca. Portanto, cantigas de circunstância ligadas com o mundo do trabalho.
Depois do seu livro acha que Mané Razuedje irá ter pelo menos direito a um busto, ou ver o seu nome atribuído a uma rua onde morou?
Veja, Mané Razuedje é na Boa Vista inteira uma figura lendária. Não sei se é só por causa de ‘Avezinha de Rapina’. Não é seguramente, porque ele tinha outras composições de igual teor, algumas até com uma cumplicidade de argumentos ainda maior. Portanto, na ilha da Boa Vista, particularmente na zona Norte, é uma figura lendária. Está bem inscrita no imaginário do povo. E tem transitado de geração, em geração, por via oral. Fiquei surpreso agora nos lançamentos no meu livro na Boa Vista, ao ouvir gente de pouca idade a cantar música dele. Perguntei-lhes, ‘como?’. Disseram-me ‘aprendi com minha mãe em casa’. Fiquei boquiaberto. Portanto, por tudo isto, creio que Mané Razuedje poderá vir a ter direito a um busco, porque ele está inscrito na alma do povo. E se a morna está na alma do povo, este autor, mais do que nenhum, na Boa Vista inteira, particularmente na zona Norte, está também. Foi um compositor com uma capacidade impressionante da capaz o quotidiano e de lhe dar voz literária.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1001 de 3 de Fevereiro de 2021.