“Capítulos da Morna é o meu contributo para o Plano de Salvaguarda”

PorAntónio Monteiro,21 fev 2021 13:44

Foi lançado no dia 5 de Fevereiro, na Praia, com a chancela da Biblioteca Nacional, o livro Capítulos da Morna, da autoria do jornalista e investigador musical Carlos Filipe Gonçalves. Em conversa com o Expresso das Ilhas o autor conta as vicissitudes que atrasaram o lançamento do livro inicialmente previsto para Dezembro de 2019, por altura da proclamação da Morna a Património Mundial da Humanidade. Capítulos da Morna é inteiramente constituído por excertos de textos, extraídos do livro ainda inédito Kab Verd Band AZ – Dicionário da Música de Cabo Verde para o qual Carlos Gonçalves continua ainda à procura de financiamento para sua edição. “Já fiz propostas a várias instituições, editoras, etc., mas as pessoas ficam indecisas, porque não foi ainda publicado nada do género em Cabo Verde”, aponta.

Afirma que o seu livro é um contributo para investigações mais aprofundadas sobre a morna. Que contribuições são essas?

Acho que o livro traz muita contribuição e muita informação nova. Para já, logo no início, traz uma extensa apresentação de todas as teses [sobre a origem da morna] que têm sido elaboradas desde os anos 30 do século passado, a que se junta a análise que eu tinha feito no Kab Verd Band [livro publicado, em 2007]. Eu acho que muito pouca gente tem conhecimento dessas teses e desse mundo dos investigadores. Eu próprio fiquei surpreendido com tanta coisa que há. Então há, digamos, em “Capítulos da Morna” uma compilação de todas essas teses, não só de investigadores cabo-verdianos, mas também de outros países que desde os anos 30 têm vindo a fazer investigação. Essas teses todas e outras hipóteses que vão surgindo são pistas para investigações mais aprofundadas. O livro não sugere nenhuma conclusão, nem toma absolutamente posição sobre nada. O livro apresenta apenas essa informação: quem estiver interessado, pode prosseguir a investigação ou ir consultar os dados apresentados nos arquivos.

O capítulo mais longo do livro é justamente o primeiro que se ocupa das principais teses desenvolvidas sobre a origem da morna. Não estaremos a desviar o foco do essencial, pois provavelmente nunca iremos saber de ciência certa quando e onde nasceu a morna?

O primeiro capítulo é longo, porque é, no fundo, o fundamento do livro. Na minha opinião, o problema da questão das origens, tem sido abordada de várias formas. Desde logo, porque a cultura de Cabo Verde resulta de um cruzamento de culturas. Há uma corrente que tenta branquear essa fusão de culturas, dando uma preponderância às origens brancas, ocultando as origens negro-africanas. Há também o contrário. Pessoas que acabam por sobrevalorizar a questão negro-africana. Actualmente provoca escândalo quando você diz ‘bem, há uma possível origem [da morna] suponhamos das raízes do batuque’. Porque o que a gente tem ouvido ao longo de todos esses anos é uma tentativa de confinar o batuque à ilha de Santiago. Diz-se que a ilha de Santiago é que tem a componente negra mais acentuada e depois os outros sentem vergonha das suas raízes negras. É preciso dizer isso claramente e não se ter vergonha. A grande verdade é que aqui no livro acabei por encontrar e confirmar o que escreveu Baltasar Lopes e outros autores: o batuque existiu em outras ilhas, nomeadamente de Barlavento. É claro que musicalmente falando, quando se diz que o batuque está na origem [da morna] isto é à partida uma asneira de primeira classe, porque a morna tem um ritmo diferente do batuque. O que aconteceu foi um processo de formação. No lançamento do livro, eu acabei por fazer uma intervenção depois do apresentador [Edson Brito], justamente por causa da questão das “Cantadeiras” que é a morna cantada e composta essencialmente por grupos de mulheres, que tinha um ritmo mais acelerado e que perdurou até inícios do século XX. Aí, temos uma origem possivelmente vinda do batuque e dessas formas africanas. Depois há outras componentes que começam a entrar nessa tal cantiga das Cantadeiras e que a transformam numa outra coisa, que é a morna que temos actualmente. Normalmente as pessoas quando pensam na morna têm a tendência em imaginar que a morna dos meados do século XIX é igual à morna que ouvimos hoje, mas não é. Essas cantigas das Cantadeiras e outras músicas que existem nessas ilhas todas, são todas derivadas desse caldeirão de culturas que surgiu e a morna acaba neste processo de formação por se tornar um subproduto de toda esta mistura de culturas que houve em Cabo Verde.

A história das Cantadeiras pertence ao reino das hipóteses da origem da Morna como, aliás, várias outras hipóteses que refere no seu livro.

Sim, eu estive a fazer aqui uma espécie de síntese de todas as hipóteses que estão no livro. Eu acho que agora as pessoas vão ler e é normal que haja muito debate. Eu tenho a minha posição, mas não a explicitei, porque o livro, como disse, tem por objectivo facultar essas informações e depois cada um tira a sua conclusão. Certamente que haverá outros estudiosos que haverão de prolongar a investigação e vai-se de certeza encontrar mais coisas. Quero ainda lembrar que há ainda uma outra componente muito pouco falada que entra também nesta equação da formação da morna e que é a contracorrente que nos vem do Brasil e das Antilhas. Portanto, o livro não fala apenas da corrente europeia e da corrente africana, pois no meio desse processo há uma nova chegada de elementos que vêm com a Modinha Brasileira que tem uma grande influência sobre a morna.

O que é que se ganha se um dia chegarmos a uma conclusão sobre a origem da morna?

Não é uma questão de se ganhar. Você precisa conhecer o passado para poder compreender o presente e perspectivar o futuro.

No lançamento de Capítulos da Morna ouvi dizer que há investigadores que foram silenciados no seu livro, não figurando sequer na bibliografia. Que comentário?

A bibliografia do livro Capítulos da Morna refere-se obviamente apenas a livros sobre a morna. Já no Dicionário da Música de Cabo Verde vai estar uma bibliografia geral dos investigadores, e sobre os músicos fiz uma selecção de entradas a constar em Capítulos da Morna, porque são pelo menos três mil… ou mais. Por isso acho que criticar-me a partir dos Capítulos da Morna não colhe. Acho natural que as pessoas critiquem. Naquilo que não tenho razão, que não encontrei, que não pude fazer, dou a mão à palmatória. É assim, você dá a mão à palmatória e vai trabalhar para resolver o problema. E se as pessoas criticam porque não têm informação, o livro tenta passar essa informação para responder a essa preocupação. Ao fim e ao cabo a crítica surge de uma preocupação.

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A edição do seu livro pela Biblioteca Nacional está inserida no Plano de Salvaguarda na Morna que tinha ficado a meio caminho devido à pandemia da Covid-19?

Não sei. Eu faço o meu trabalho por paixão, por amor, pois, agora que estou na reforma, é uma forma de ocupar o meu tempo com algo positivo. Eu conheço o Plano de Salvaguarda da Morna. Diria que é um Plano ambicioso, mas pelo que entendi tem muito pouco orçamento. Este é um problema de política e se o meu livro entra neste Plano, muito bem, se não entra, também não é meu problema. Diria que o meu livro é um contributo para a Salvaguarda, porque a Salvaguarda implica conhecer o passado, como disse há pouco, para se poder compreender o presente. Acho que o livro leva as pessoas a reflectirem sobre a evolução deste género musical que continuará a evoluir conforme a sociedade for evoluindo. O problema surge quando se tira um género do seu contexto de vivência, ou quando este género deixou de ter a utilidade que tinha na sociedade, mas queremos mesmo assim conservar esse género. Aí esse género passa a ser guardado numa redoma e a gente vai tentar conservar algo que já não tem utilidade, porque um género musical, ou uma prática cultural tem uma utilidade social. Um exemplo é o batuque, um género, ou uma expressão cultural, que tinha uma função social: era utilizado em casamentos, em rituais de fertilidade, etc. Foi evoluindo e o que se tentou fazer num certo período da nossa história foi esvaziar o conteúdo funcional desse género e a partir daí começou a morrer. Foi perseguido durante a época colonial através de diversas proibições. Entretanto, depois da independência o género renasceu, mas, já não renasce com aquela função que tinha no passado, porque, isso foi esvaziado e então assume uma nova utilidade. Aí essa manifestação cultural passa a ser praticada de uma outra forma. Agora, o terreiro passou a ser o palco e nesta transição as próprias componentes transformaram-se. Por exemplo, a “sulada” (pano) que antes as mulheres punham entre as pernas para bater e fazer o ritmo, foi substituída numa primeira fase por uma bolsa de plástico com a “sulada” lá dentro e posteriormente, por um artefacto de napa que se põe entre as pernas. Entretanto, entraram outros instrumentos que não faziam parte do batuque tradicional. Daí, já agora, a importância do dicionário [Kab Verd Band AZ – Dicionário da Música de Cabo Verde, livro ainda inédito] porque, a partir deste, eu poderia publicar um outro livro intitulado Capítulos do Batuque, ou Capítulos do Funaná e por aí em diante. Daí a importância deste tipo de publicação, pois eu e tu, nós conhecemos isso, porque nós vivemos o antes e o depois da independência. Mas os que nasceram em 1975 ou depois não encontraram nada disso. Por isso precisamos que haja uma memória desse tempo, para se saber que afinal o batuque não era o que se vê actualmente.

Capítulos da Morna é um livro constituído por excertos de textos, extraídos do acima referido livro ainda inédito Kab Verd Band AZ – Dicionário da Música de Cabo Verde. Acha que com o lançamento irá encontrar finalmente financiamento para este seu livro inédito ainda?

Penso que mesmo depois da publicação de Capítulos da Morna as pessoas não fazem ideia do que é o Dicionário e qual a sua utilidade. Já fiz propostas a várias instituições, editoras, etc., mas as pessoas ficam indecisas, porque não foi ainda publicado nada do género em Cabo Verde. As pessoas também nunca tiveram oportunidade de consultar um livro deste tipo. Há dicionários de tudo, inclusive de produtos electrónicos, mas não há nenhum dicionário da música de Cabo Verde. Então eu vi que as pessoas não tinham essa percepção e resolvi propor a publicação do Capítulos da Morna por altura da proclamação da Morna a Património Mundial da Humanidade que entretanto devido a vicissitudes de vária ordem só agora foi lançado. Capítulos da Morna dá, pois, uma ideia do que será o Dicionário e isso é positivo porque já senti que vem a caminho um possível financiamento para este livro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021. 

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Autoria:António Monteiro,21 fev 2021 13:44

Editado porSheilla Ribeiro  em  19 nov 2021 23:20

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