Quem quiser debruçar-se sobre a etno-história de Cabo Verde depara-se com uma série de dificuldades, porque a maior parte dos documentos encontram-se em Portugal no Arquivo Histórico Ultramarino, nas Bibliotecas Nacionais de Lisboa e do Porto e na Torre do Tombo.
“No Arquivo Histórico Nacional o acervo é muito reduzido. Este é que é o estado da arte nos 45 anos depois da Independência. Infelizmente é assim”, lamenta o antropólogo Brito-Semedo, a par do sociólogo Nardi de Sousa, um dos apresentadores da obra.
Acontece que o livro “Um Mar de Conflitos – Marcellino Rezende Costa Vs Manoel António Martins”, que será apresentado amanhã, na Praia, centra-se em duas figuras marcantes do nosso século XIX, quando ainda não havia imprensa periódica em Cabo Verde, pois os primeiros jornais só surgem a partir de 1877 e, para piorar as coisas, o último volume da História Geral de Cabo Verde não cobre este período, que se desenrola na primeira metade do século XIX, pois vai de 1647 a 1778.
“Isto é para mostrar que o que acontecia em Cabo Verde e que está registado precisa ser consultado de um lado e do outro [Portugal e Cabo Verde] para nós podermos ter esse quadro”, explica Brito-Semedo.
Para ilustrar as dificuldades que o autor levou na elaboração do presente livro, Brito-Semedo refere que a própria História Geral de Cabo Verde, que tem três volumes, só vai até o século XVIII. E o volume três que foi publicado em 2002 abrange apenas o período de 1647 a 1778. “E nada indica que este projecto vai ser retomado. Não temos nenhuma referência, ninguém fala disso e as instituições que deviam ocupar-se do assunto não falam de um projecto com os méritos ou desméritos que houve. Esta é a História Geral de Cabo Verde que nós temos”, pondera Brito-Semedo.
Abordagem a partir de posições e trajectórias
Para contornar todo este “mar” de constrangimentos, o autor, como já havia feito nos seus últimos livros, optou por uma abordagem da história a partir de posições e trajectórias de figuras marcantes, neste caso do Escrivão Deputado da Junta da Fazenda da Província de Cabo Verde, Marcellino Rezende Costa (Praia, 1800 – 1848) e Manuel António Martins (Reino da Galliza, 1772 – 1845), figura “incontornável” da história do arquipélago, na primeira metade do século XIX.
“Por vezes, essas figuras são controversas e é com base em documentos, relatórios, memórias oficiais, correspondências e petições é que o historiador trabalha para iluminar os acontecimentos desses períodos”, comenta Brito-Semedo.
Como exemplo paradigmático desta nova abordagem, Brito-Semedo cita o livro “Memória sobre Cabo Verde do Governador Joaquim Pereira Marinho & Outros Textos” publicado em 2009 e que foi galardoado com o “Prémio Sena Barcelos de Monografia”.
É através deste governador de Cabo Verde que o autor faz uma abordagem da história e das relações políticas num dos períodos mais conturbados na nossa história, na sequência no movimento liberal na então metrópole portuguesa provocando uma reacção do absolutismo na figura de Dom Miguel que viria a descambar-me numa guerra civil em Portugal que vai de 1832 até 1834. Aliás, é na sequência das guerras liberais que vem a surgir a Cidade de Mindelo.
Na mesma linha, Daniel Pereira publica em 2016 “Novos Subsídios para a História de Cabo Verde”, livro que se centra na figura do Governador D. José Coutinho (1803 a 1818) e traça um retrato histórico dos principais acontecimentos desse período.
O historiador repete o mesmo método no seu novo livro “Um Mar de Conflitos – Marcellino Rezende Costa Vs Manoel António Martins, no qual “com base num acervo documental riquíssimo ilumina um período importante da nossa história procurando repor a Verdade da História”.
Uma importante reconstituição de uma personagem histórica
Conforme nota da editora Rosa de Porcelana, “Um Mar de Conflitos – Marcellino Rezende Costa Vs Manoel António Martins” apresenta uma ampla documentação que fora coligida por Marcelino Rezende Costa, Escrivão Deputado da Junta da Fazenda da Província de Cabo Verde de então, tendo como escopo servir de apoio probatório em sua defesa e, através dela, partir para uma série de acusações contra Manuel António Martins, figura incontornável da história do arquipélago cabo-verdiano, na primeira metade do século XIX. Este livro do historiador Daniel Pereira contribui para uma importante reconstituição do perfil desta personagem histórica”.
“Um Mar de Conflitos - Marcellino Rezende Costa Vs Manoel António Martins” será apresentado esta quarta-feira, na Biblioteca Jorge Barbosa, na ilha do Sal, e amanhã, quinta-feira, no Centro Cultural Brasil-Cabo Verde, na Praia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1028 de 11 de Agosto de 2021.