João Lopes era o seu nome de igreja. Djunga, o seu nominho.
Era primo da minha avó Lídia e vivia com ela e a minha bisavó Bata, na casa da rua do Matadouro. Por cima vivia tio Frank. Ou, como era conhecido, B.léza. Mas essa já é outra história, hoje é de Djunga que falamos.
Era ele que tomava conta da minha mãe, ainda muito pequena, pelo menos até ela ter sido entregue aos cuidados da avó paterna, dona Chiquinha, mudando-se para a Praça Nova. Lá, estranhando a nova vida, ficou por três dias a gritar no quintal, sob o olhar paciente dessa avó que a partir daí cuidou dela. Não era a mãe que ela chamava. Era Djunga. “oh Djunga, bem bscam...”
Djunga não a podia ir buscar. Mas quem se lembrará dele, senão aquela criança que lançava o seu nome para o universo num grito?
Não chamávamos Djunga de primo, nem de tio. Nem tinha o nome complementado, como tantas vezes acontece, com nome de pai ou de mãe. Djunga era Djunga. Singular, único, como o próprio.
Era alto e magro, até um pouco desajeitado. A cara era redonda, e os olhos sobressaíam por ter um tom mais claro que a pele, que era escura e luminosa. Lembro-me dele já careca em cima e com uns farrapos de cabelo compridos e desfloridos em coroa. Gostava de contar histórias, tinha um jeito expressivo, diria até histriónico. Punha-se de pé, com as pernas bem abertas e firmes no chão, mexia os braços e as mãos como se a situação lhe acontecesse naquele momento, ocupando o espaço à sua volta como se de um palco se tratasse. Narrava as suas aventuras de olhos grilidos, fazendo pausas dramáticas, numa mistura de criolo e português intchode.
Quem se lembrará das histórias de Djunga?
Quem se lembrará que ele não foi à escola, não sabia ler nem escrever, mas era esperto e vivaço como poucos. Mal tinha embarcado no navio grego, e pouco tempo depois, a vizinha, que tinha telefone em casa, recebe uma estranha chamada que quase deu um abol, porque mal se entendia: era Djunga, falando grego.
Djunga ca tava enrasca. Tanto assim era que, contou-me, numa altura em que estava com fome e sem um tostão no bolso, lembrou-se de ir apanhar palha e atá-la fortemente a uns paus. Fez vassouras, que vendeu.
Quem se lembrará que Djunga não sabia ler nem escrever, mas sabia fazer vassouras? E eu, que era na altura menina estudante de liceu, pensava: o que faria na mesma situação? Provavelmente não teria o mesmo engenho e ficaria com fome.
Sempre que o navio onde trabalhava passava por Lisboa, Djunga tocava-nos à porta para passar um bocadinho com a família, contando as suas histórias de marinheiro, e gabando-se de ser bom cozinheiro naquês navio.
De uma das vezes, perguntou à minha mãe: “oh Celeste, m podê bá nadá?”, deixando-me por momentos intrigada a pensar como é que ele queria nadar num apartamento num quinto andar... até ver a minha mãe entregar-lhe toalhas e indicar-lhe a casa de banho.
De outra vez, pediu-me que lhe escrevesse uma carta. Era a primeira vez que me pediam para o fazer, e fui buscar caneta e papel, entusiasmada com a tarefa que acreditava ser como quando me faziam ditados na primária. Qual não foi o meu espanto quando Djunga se senta perto de mim e começa a apontar para o papel dizendo “ponha lá que estou bem e pergunte por aquela gente”. Djunga não tinha ido à escola, não sabia as regras para escrever uma carta. Fiquei ali a tentar compor um texto, a esmerar-me na caligrafia, enquanto ele espreitava por cima do meu ombro, certificando-se que eu não me esquecia dos seus vários recados. Por fim, li a carta e ele aprovou o resultado final. Embrulhou o papel cuidadosamente e guardou-o.
Quem se lembrará de Djunga, das suas histórias, da sua inteligência viva e pragmática, do seu engenho e da sua imaginação fervilhante, da vida que lhe sobrava nos olhos?
Djunga era meu parente, mas é também para mim símbolo de tantos outros cabo-verdianos, que cada um de nós conhece. Na sua família ou na sua rua, na sua cidade, na sua ilha. Ou até mesmo pelo mundo.
Djunga é apenas um dos muitos nomes desta resiliência, desta força, desta alma. Desta singularidade.
Quem se lembrará de Djunga?
Eu não me esqueço nunca.