Assim faz acontecer, numa mistura de prático e sonho, conforme se justifique, parecendo haver espaço para tudo e – nós, todos nós – qual crianças à frente de um puzzle, vamos encaixando as peças de acordo com as cores, matérias ou formas …ou de acordo com a sua pertinência, momento ou motivo. Enfim, os valores são escolhidos por cada um…ou melhor, chegam a cada um de forma branda.
Lembro-me que, um dos discos que me mostrou o quanto pode ser a intensidade passional da música, foi “Raiz” dos meus queridos e eternos “Simentera”. Já neste espaço foi abordado, e é peça constante nos trabalhos que faço nos quais me pedem para indicar discografia de Cabo Verde. Ainda hoje o ouço como se novo fosse – e na verdade o é.
“Raiz” – depois dos Abel Djassi, enquanto grupo – julgo ser o primeiro trabalho onde Mário Lúcio Sousa mostra na íntegra a sua mestria. É difícil destacar um nome num grupo tão homogéneo como os “Simentera”, mas Mário Lúcio foi um dos fundadores e mentores.
Simentera foi o ponto de partida, um cais sempre com retorno marcado, para a viagem-carreira do compositor.
Estradas se abriram e as produções musicais se multiplicaram. Depois de longo e marcante caminho com os Simentera – grupo que carimbou de certa forma em formato singular a história da nossa música – Mário lança-se numa carreira a solo.
Nesta fase, Mário Lúcio já se encontra incluído numa rede de músicos mundiais consideráveis, que julgo ter tido o seu “começo” no primeiro Festival de Jazz de Cabo Verde – onde três palcos distribuídos pela Cidade Velha, pela Avenida Amílcar Cabral e pelo Quintal da Música encheram a Cidade da Praia de música durante quase 15 dias. Para mim, uma vez que tive o privilégio de participar – foi um momento que hoje considero de enorme visão, apenas para aqueles que projectam sonhos materializáveis, como acima referido.
Mas voltando à carreira de Mário, permitam-me enaltecer dois discos: o brilhante “Mar e Luz” (…para mim maré luz…) onde a intimidade é tanta que nos aconchega e nos embrulha docemente num balanço sentido.
Vasco Martins e a sua sensibilidade e capacidade analítica referiu-se ao disco “Funanight” como “um funaná transcendental”. Não duvido, meu caro Vasco.
Num disco onde o instrumental foi precioso e de certa forma inovador na nossa música – o Funaná foi claramente celebrado, desmanchado e mostrado. Um disco de referência para a nossa música. Contudo, momento grande deste disco foram os espectáculos ao vivo onde Mário construiu uma autêntica banda de luxo, muito cimentada em elementos dos “Abel Djassi”, mas não só. Os espectáculos foram explosões de ritmo, música e emoção que se partilhava por entre o público.
Continuando, Mário Lúcio depois de algum tempo fora, regressa para apresentar o seu mais recente trabalho que sairá no final do ano – “Migrants”.
Segundo o compositor “um disco para ecoar no coração da Humanidade, porque canta a beleza da caminhada humana e canta a tristeza dos que fogem da guerra, da perseguição, da fome e da miséria. Um disco para apelar ao nosso humanismo e para homenagear aqueles que perderam a vida a tentar cruzar mares e terras ao longo dos séculos”. Musicalmente, tanto o disco como o concerto propõem claramente uma nova abordagem da nossa música, como é apanágio do Mário Lúcio, agora complementado pel’Os Kriols. Às raízes sempre presentes na estética de Mário Lúcio, serão adiccionadas novas pesquisas tímbricas, resultando claramente em algo inovador no nosso panorama musical, pois a música assim o pede, que procuremos experiências que se acrescem às sonoridades das nossas raízes, tornando tudo num contemporâneo que bebe do passado.
Assim, acredito que no dia 16, voltando ao princípio do texto, cada um de nós terá peças que ao se encaixarem – juntas farão este momento – um momento de vários palcos num só palco regido de gratidão.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1085 de 14 de Setembro de 2022.