A referência mais antiga de que se tem conhecimento do Carnaval é do ano de 1910, quando surgiu em Mindelo, a cidade-porto, o grupo “Couraçado Minas Gerais”. Na década seguinte apareceram os grupos “Belo Horizonte” e “Floriano”, cujo principal mentor foi B.Léza (Mindelo, 1905 – 1958).
Em 1926, B.Léza é colocado em São Filipe, ilha do Fogo, como chefe de Estação Telégrafo-Postal dos Serviços dos Correios e Telégrafos – CTT e, ali, juntamente com alguns outros rapazes, introduz o Carnaval e funda o grupo “Floriano”.
Era o Brasil a inspirar o Carnaval das ilhas. Mas o inverso vai também acontecer.
Em 1922 chega a São Vicente, vindo da ilha de São Nicolau, localidade das Queimadas, um rapaz chamado Eugénio Pedro Ramos que ficou fascinado pela forma como se festejava o Carnaval nesta ilha, muito diferente do da sua ilha natal com tradição mais antiga. Isso deslumbrou-o tanto que, fixando-se no Brasil, onde passou a ser conhecido como Cabo Roque, viria a fundar a Escola de Samba X-9 de Santos, Estado de São Paulo, que, nos campeonatos realizados de 1947 a 2000, foi 21 vezes campeã e 23 vezes vice. Inclusivamente, existe uma foto de 1969 do Cabo Roque, que morreu em 2003, com 99 anos, a entregar uma distinção da X-9 a Pelé.
Carnaval do Mindelo Carnaval d’intentaçon
Em tempos mais recuados, o Carnaval era festejado principalmente com bailes. Havia também os assaltos, em que os jovens entravam em casa alheia de rompante, iniciando uma verdadeira festa, com música e dança. Só mais tarde é que surgem os chamados blocos e os seus cortejos, e o Carnaval passa a ser vivido também na rua.
Baltasar Lopes, no romance Chiquinho (1947:173-174), descreve assim o ambiente do Carnaval vivido nos anos 30 em Mindelo:
O carnaval vai desfilando pelas ruas. Grupos passam no ritmo apressado das marchas. Cow-boys. Há rapazes vestidos de mulheres. (…) O Bloco Floriano tomou a cabeça da festa. Estão todos fardados de oficiais da marinha brasileira. (…) A marcha do Bloco foi feita pelo Franck Beleza. (…) O povinho deplora a ordem que não deixa atirar ovos chocos aos transeuntes. (…) Aglomeração de gente para ouvir o grupo Belo Horizonte num samba.
Nos anos 1940/1950, proliferavam nas muitas salas de baile – Jon Tolentino, Zé de Canda, Nhô Fula, Djacô, Toi Bintim – os chamados bailes nacionais, onde iam pessoas de todas as idades, profissões e classes sociais. Havia também os bailes nas sedes do Grémio Sportivo Castilho e do Clube Sportivo Derby, mas os bailes de Carnaval do cinema eram os de mais farra visto que os “carnavaleiros” se apresentavam mascarados passando muitos deles incógnitos. A coladeira “Intentaçon d’Carnaval” dá conta disso:
Povo de Sonvicente
Boces bem tude
Nô bem cabá quess
Viçarada dess carnaval d’intentaçon
Oh que sabe na munde
Oh que sabe na munde
Na entrada de edenpark
N otxá um zorro ta tchorá
Adé mescrinha qzi isse oi
Nô bai, nô bai
Hoje ke dia desse coza
Uvi quel malta la dente
Cum canecar diferente
Bem bibê um puntchin
Ardigá bô vida
Bem fazê bô curpin sabe oi
Krêd un sabe bô ê dret
Bô tem gente ta espancá
Bô li fora te txocá
... ... ...
– Tony Marques da Silva
Nos anos de 1960 o Carnaval Mindelense decai quando desaparecem os grandes grupos “Oriundo” e “Estrela da Marinha”. Destaca-se, contudo, Gregório Gonçalves, Ti Goi (Mindelo, 1920 – 1991), que resiste estoicamente ao desaparecimento de uma das mais belas e tradicionais festas de São Vicente. Desfila apenas com o seu grupo “Lombiano”, no intuito de animar as ruas da cidade, chegando mesmo a incentivar o surgimento de outros grupos como o “Flor Azul” e o “Rio de Janeiro”, para que o “Lombiano” não saísse sozinho e assim houvesse competição.
Entre 1975 e 1978, apesar do Carnaval não ter desaparecido totalmente das ruas, o concurso do desfile oficial teve uma interrupção e, de modo geral, o Carnaval sofreu um grande declínio.
Segundo Maria do Carmo Lorena Santos (Tese de doutoramento em Antropologia, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2018), 1978 é “o ano do famoso ‘casamento’ de Pedro Comparação, organizado por Djibla. Tratou-se de uma animação de rua que consistiu na encenação de um casamento e que atraiu toda a população da ilha, apesar de uns terem sido meros espectadores e outros convidados para a ‘boda’, que teve lugar num recinto fechado, o edifício conhecido por Lar dos Marinheiros, actual Atelier Mar. De uma certa forma, o ano de 1978 marca a viragem do carnaval pós-independência. Foi a partir daqui que o Carnaval mindelense recomeçou.”
Durante bastante tempo, os compositores cabo-verdianos que faziam parte dos grupos de Carnaval inspiravam-se nas marchas e sambas do Carnaval brasileiro para comporem os do Carnaval mindelense. Só nos anos 1980, por iniciativa de Vlú, Daniel Medina, Nando Lopes, Constantino Cardoso…, é que isso começou a alterar-se com as marchas, sambas e batucadas a serem feitos na língua da terra.
Já-m conchia São Vicente
Na sê ligria, ne sê sabura
Ma’m ke pud fazê ideia
S’na carnaval era más sab
São Vicente e um brasilin
Chei di ligria, chei di cor
Nês três dia di loucura
Ca tem guerra, é carnaval
Ness morabeza sem igual
– Pedro Cardoso Rodrigues
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1108 de 22 de Fevereiro de 2023.