“Nestas questões de biografia, o autor deve ser o escolhido do biografado e não propriamente o contrário”

PorAntónio Monteiro,25 ago 2024 9:03

“Kamal Hojeige - A experiência de um investidor em Cabo Verde”, terceira obra de Margarida Fontes, foi apresentada na Praia, pela própria autora, no dia 26 de Julho, num grande evento, num dos hotéis da capital. A actividade, ponto alto das comemorações dos 30 anos do Grupo Khym Negoce, foi uma iniciativa dos promotores do livro, e tinha como público os parceiros e amigos do Grupo. O livro terá outro lançamento na Cidade da Praia previsto para Setembro, mês do aniversário da autora, e em outros pontos do país e da diáspora, incluindo o Senegal, terra natal do biografado. Margarida Fontes revelou ao Expresso das Ilhas que, com a mente liberta e afastada de tudo o que era empecilho para a sua carreira literária, está agora a concluir uma colectânea de contos que homenageia a ilha do Fogo e a perspectivar um futuro romance, “se não surgirem, de repente, propostas de biografias para atrasar esses dois projetos”.

É conhecida no meio literário cabo-verdiano como autora de dois livros de poemas e de ter participado em três publicações poéticas, além dos poemas que escreveu no seu blog. Então, como surgiu a ideia de escrever um livro biográfico?

Para além desses que mencionou, em 2021 participei numa publicação de contos, editada em Itália. Éramos oito autores de oito países diferentes. O livro intitula-se “Storie dal mondo. Viaggio tra le voci degli scrittori”. Respondendo à pergunta, eu gosto de contar histórias, tanto de figuras como de lugares. Gosto de relevar as contribuições das nossas figuras emblemáticas. É algo que fazia muito nos meus documentários biográficos na televisão com escritores e músicos. Não escrevi um livro biográfico antes, porque não surgiu oportunidade. Nestas questões de biografia, o autor deve ser o escolhido do biografado ou dos promotores da obra, e não propriamente o contrário. Recebi o convite e aceitei com muita honra.

Podia contar-nos a génese do seu novo livro?

Em Novembro do ano passado recebi uma chamada telefónica dos promotores da ideia, liderado pela Suzette Spencer, e convidavam-me para escrever um livro biográfico sobre Kamal Hojeige, no quadro dos 30 anos do Grupo Khym Negoce. Conversamos sobre a proposta, entendi o desafio, e pensei durante alguns dias. A minha única apreensão era relacionada com o tempo. Não demorei para decidir. Tive literalmente de correr contra o tempo, porque eu não conhecia bem Kamal Hojeige, apenas acompanhava à distância o seu trabalho, que achava muito interessante. A minha primeira condição no acordo com eles era ter tempo suficiente com o biografado, para poder extrair tudo o que precisava para o livro. Kamal viaja muito, é muito ocupado, e isso podia constituir uma séria dificuldade. Fiz um calendário de entrevistas, ele aprovou, e fomos conversando todas as semanas sobre todos os assuntos. Ouvi também a sua família, colaboradores e amigos que ajudam a entender o homem e a dimensão dos seus empreendimentos. Outro desafio é que o livro tinha de ser uma surpresa para Kamal Hojeige. Com ele acertamos que eu estaria a investigar para escrever um caderno especial para publicar como anexo de um jornal. Foi muito difícil gerir essa parte, tendo em conta o volume do material que precisei extrair dele. Mas o resultado foi compensador. Ele ficou profundamente tocado no dia do lançamento, e foi realmente surpreendido. No meu círculo, apenas duas pessoas sabiam que eu estava a escrever este livro. Guardei bem o segredo.

Qual é a imagem deste empresário de sucesso de origem libanesa que o livro devolve ao leitor?

A primeira grande imagem que quisemos transmitir é o retrato de um empresário diferente, empreendedor visionário, com qualidades humanas excepcionais, e que acreditou muito em Cabo Verde. Acreditou num mercado improvável, em 1994, e foi incansável e muito inteligente na forma como lidou com esse mercado, que hoje oferece muitas oportunidades. Quisemos também partilhar o seu modelo de gestão indirecta, onde cada gerente implementa a sua estratégia de venda na loja sob sua responsabilidade, administra livremente, apresenta resultados e recebe comissões, consoante o seu desempenho. A outra imagem que quisemos partilhar é a atenção que as lojas do Grupo dispensam aos consumidores. Sabem que a satisfação do cliente é algo decisivo. Infelizmente, nem todos levam essa questão em devida conta no nosso país.

O que é que os nossos empresários e candidatos a empresário podem aprender dos 30 anos de carreira do fundador e presidente do Grupo Khym Negoce?

Lições de resiliência e a importância de ter boas equipas. Um empresário não consegue ter sucesso sozinho. Ele deve, de forma genuína, criar uma equipa forte de gente confiável e comprometida com o negócio. Kamal Hojeige partilha as suas estratégias, e a fórmula que encontrou para chegar até aqui. Para mim, esta seria uma grande lição. Outra lição, é estar aberto às ideias inovadoras dos filhos e dos colaboradores para a modernização dos negócios. Temos algum conservadorismo e resistência nesse quesito em Cabo Verde. Daí os inúmeros conflitos que assistimos entre pais empresários e os seus filhos. Outro aprendizado importante é a valorização dos trabalhadores. Investir em políticas de pertença.

O sucesso, ou mesmo a existência do Grupo Khym Negoce que iniciou as suas actividades em Cabo Verde, em 1994, seria possível durante a vigência do Partido Único.

Não seria possível, por uma única razão. As políticas activas para atrair investimento estrangeiro, a liberalização económica, só surgiram com a mudança de regime, e na Segunda República. No livro, Henri Saint Aubyn, um dos sócios fundadores da loja Khym Negoce, contou que trouxe um projecto de investimento para Cabo Verde em 1987 e foi bloqueado. Depois da abertura política, regressou com o grupo de empresários, todos de origem libanesa, que abriu, em sociedades diferentes, uma padaria, uma loja de colchões e a loja Khym Negoce.

Um dos capítulos do livro compila dez conselhos do empresário Kamal Hojeige. O que mais me agradou foi esta: “Nem todos precisam ser empresários, porque senão ficaríamos sem alguém para comprar. O que Kamal quis dizer com este conselho?

Essa resposta que cita, veio dele, em jeito de brincadeira, num dia em que fiz muitas perguntas sobre os caminhos do empreendedorismo. Acabamos por ser impelidos a pensar que os empreendedores vão resolver todos os problemas, e que todos devemos abraçar esse universo. Os empresários precisam também ser bons compradores, lembrou Kamal, e bem. Ou seja, ao mesmo tempo em que educamos os novos empreendedores, devemos também educar as pessoas para gerirem bem o seu dinheiro, as pessoas que vão comprar e que dão sentido ao negócio. Há essa parte, um pouco negligenciada. Nem todos têm jeito para ser empresário, e devem também aprender a ser bons compradores.

Qual o seu conselho preferido?

Eu gostei muito do conselho número 4. Respeitar o trabalho. No dia em que todos respeitarem a sua força de trabalho e honrarem o salário que recebem no fim do mês, teremos um país muito mais próspero. Gostei muito da conexão que ele faz entre a força de trabalho rentável e o salário merecido. É uma das ideias de prosperidade que beneficia muito o trabalhador e incute nele o interesse de criar o seu próprio negócio no futuro. Os caminhos de uma consciência produtiva.

A biografia é um género pouco cultivado em Cabo Verde. As poucas obras existentes são de biografia literária e mais recentemente de biografia política. Na feitura do seu livro o voo ocorreu encima das nuvens, sem terra à vista, ou pôde contar com alguma obra de referência?

Já li algumas biografias e as referências estão na minha mente. Mas tenho muito presente os métodos de escrita de uma biografia que aprendi na Faculdade de Comunicação. Nunca esqueci, porque adorei o formato, e sempre sonhei exercitá-lo. Neste caso, muito concretamente, o voo ocorreu encima das nuvens (risos). Quis seguir o meu próprio caminho e a minha sensibilidade estética, de acordo com o material e o tempo de que dispunha para trabalhar. No meio do processo de escrita, deparei com um problema que poderia resultar em algum ruído estilístico. Contactei o meu amigo Paulo Markun, um renomado jornalista e biógrafo brasileiro, e ele tirou-me muito rapidamente essa dúvida. Como mencionei no livro, há sempre muitos caminhos para construir uma narrativa, escolhi o meu, com segurança, que resultou de forma muito satisfatória neste livro agradável se de ler.

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Tem em mente outras obras biográficas?

Vai depender de convites. Como já mencionei, prefiro que alguém me convide para esse trabalho. Em caso de personagem vivo, o biografado, ou os promotores de uma biografia, devem se identificar com a autora, gostar do seu estilo. O trabalho de pesquisa demanda muita proximidade e troca de impressões com o biografado, e deve existir essa sintonia. De outra forma, não é possível, nem confortável. Estou aqui a falar de personagens vivos, naturalmente.

Em termos estritamente literários, quais são os seus próximos projectos?

Vou concluir uma coletânea de contos que homenageia a Ilha do Fogo, e preparar a publicação. Um belo dia percebi que todos os micro contos que já escrevi trazem históricas que decorrem no Fogo. São contos muito ligados ao mar, a pescadores, a noites, a pessoas da ilha. No futuro, publico um romance. Se não surgirem, de repente, propostas de biografias para atrasar esses dois projetos mencionados, esses livros não demorarão muito para conhecer a luz do dia (risos). Estou numa boa fase, com mente liberta e afastada de tudo o que era empecilho para a minha carreira literária. Escrevo todos os dias e estou muito inspirada e feliz.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1186 de 21 de Agosto de 2024.

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Autoria:António Monteiro,25 ago 2024 9:03

Editado porDulcina Mendes  em  27 ago 2024 12:47

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