Começando com a primeira pergunta que o papa da literatura alemã, Marcel Reich-Ranicki, colocava sempre aos seus entrevistados: o que quis nos dizer com o seu novo livro?
(Risos!). É uma pergunta provocadora, realmente. Talvez possamos recorrer a Fernando Pessoa e alegar-sustentar a nossa posição de mediador(es) na construção de qualquer tipo de obra. Efectivamente, "Deus quer, o homem sonha e a obra nasce". A obra jurídica possui também, embora poucos pensem nisso, mormente numa época dominada pelo positivismo legalista mais pedestre!, uma radicação metafísica. Um São Tomás de Aquino escreveu páginas definitivas neste sentido. Os juristas do século XXI deviam ler o seu Tratado da Justiça, que é referido, aliás, no meu livro, de entre vários outros autores, de vários países, tendências e culturas. O jurista, na minha forma de ver as coisas, deve ser sempre e em qualquer caso um homem culto, reflexivo. Deve tentar compreender o Direito, a sua natureza ôntica e a sua específica função social e civilizacional. É isto que me levou, em síntese, a escrever este novo livro, que recolhe cerca de duas décadas de experiência nestas lides. Este é um livro, malgré tout, para...abrir horizontes! É um livro diferente, tranquilo, indagativo, uma espécie de "romance jurídico", que mira o Direito de ângulos inusitados e procura o seu fundamento transcendente. O fundamento das normas é sempre transpositivo. Este dado é crucial. O texto da lei supõe sempre um referente e aponta, pois, para um "quid", que lhe confere sentido e legitimidade. Este elemento, devo dizer, é permanente, imutável e universal. Simultaneamente, este é um livro altamente prático e que pode ser utilizado, com vantagem, na tarefa judicativa (de matriz problemático-axiológica) de realização do Direito.
O que o motivou a escrever este livro?
Este novo livro é sobre vários assuntos em simultâneo: Ética e Deontologia do Advogado, Direitos Fundamentais, Interpretação Jurídica, Metodologia da Prática Jurídica, Teoria Geral do Direito, Filosofia, etc. Porque o escrevi? Notei que havia uma grande e inadmissível lacuna nesta área científico-cultural em Cabo Verde. Ora, nos termos do art. 10.º do Código Civil vigente, temos, enquanto juristas, de preencher as lacunas, segundo o espírito do sistema! É isso que tentei fazer, após vários anos de estudo, reflexão e organização de uma infinidade de materiais e experiências jurídicas. É uma visão heterodoxa e muito ampla, que tenta aprender, sem nivelar por baixo, com todos os povos do mundo. O Direito é um projecto cultural irrenunciável e uma das grandes aspirações da alma humana, que clama sempre pela Justiça e pela Equidade. Implica uma reflexão profunda sobre a natureza humana e os fins últimos da Pessoa, da Sociedade e do Estado. A Deontologia recorta-se nesta intersecção fundamental entre um certo Método e uma certa Filosofia (a Philosophia Perennis, se quisermos). A Ética é um ramo da Filosofia e visa orientar, da melhor forma possível, a acção humana, nas vicissitudes mesmas do nosso quotidiano. Como digo expressamente no Plano Geral do Livro, há que passar "do ser ao dever-ser e ao dever-fazer", em busca da essência, enfim, da Scientia Iuris. É este o nosso horizonte de exigência, obrigação e responsabilidade.
Abre o livro com uma citação de Eugénio Tavares. Porquê esta distinção?
Gosto muito de Eugénio Tavares, sem dúvida. O trecho dele, com que abro praticamente o meu novíssimo livro, condensa perfeitamente o espírito do livro (e das leis, diria Montesquieu), ao falar, de forma tocante, da necessidade de educação filosófica e do "culto das belezas morais", sem os quais ninguém consegue perceber as noções de honra, justiça e equidade. Trata-se inquestionavelmente de um pensamento profundo e intemporal! Eugénio faz parte de um grupo muito selecto de escritores e pensadores cabo-verdianos que admiro. Sempre foi um espírito liberal e humanista, um dos grandes arquitectos da nação cabo-verdiana, enquanto "comunidade imaginada", para falarmos como Benedict Anderson. Como sabe, desde 2013, quando publiquei o meu primeiro livro, já tinha debruçado sobre o pensamento juspolítico do vate bravense, erradamente considerado, segundo um cânone ideológico empobrecedor e mal pensado, um "pré-claridoso". Não é assim. Eugénio de Paola Tavares é, sem qualquer favor, um nosso contemporâneo; é uma figura plenamente actual e indispensável, até para compreendermos os fundamentos inconcussos do Estado de direito democrático e constitucional, o nosso autêntico modo-de-vida, cuja base fundante é a dignidade da pessoa humana. A Constituição alemã de 1949, de forma pioneira na Europa, e aliás com grande repercussão internacional, veio estabelecer a diferença essencial entre lei e Direito. Ora, isso já consta(va) das reflexões do nosso Eugénio Tavares, em páginas de grande profundidade analítica. É um legado inspirador. Tenho vários textos publicados sobre o "corpus" teórico tavaresiano, numa clave reflexiva original e muito própria, e tenciono aprofundar esta linha de pesquisa em futuros livros, artigos e ensaios, se Deus quiser. O pensamento clássico ultrapassa as modas culturais, as preferências políticas e os interesseiros tiques burocráticos, atravessando o Tempo com o brilho sereno das verdades inalienáveis. Isso leva-nos, evidentemente, à Noosfera, onde o espírito humano reina soberano e traça o sentido marcante da própria existência, para além da lei da necessidade. Caso contrário, triunfará o materialismo mais primário e o Estado totalitário, que se ergue, em última instância, sobre o terreno movediço da abolição do homem e dos seus propósitos originários e transcendentes. A técnica deve subordinar-se à ética. Somos seres sígnicos e metafísicos. É disso que se trata! Como digo no livro, na esteira de K. Jaspers, é preciso conjugar a Vernunft (razão) com a Existenz. Só assim haverá o esperado e feliz encontro do Direito com a Justiça, que pacifica a sociedade dos homens e possibilita a construção de um Estado civilizado e democrático. Os juristas têm de reaprender a diferença decisiva entre o texto e a norma, entre o "quid iuris" e o constituinte "quid ius", mormente nesta sociedade tecnocientífica volátil e marcada pelos laivos redutores da noopolítica.
Cita recorrentemente nos seus livros o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Qual a sua importância para a ciência jurídica?
Aprecio também, e muito, o germânico Jürgen Habermas, que sigo há mais de duas décadas. Tem sido uma presença constante nos meus escritos. Habermas tornou-se, nos últimos tempos, um kantiano, reflectindo preferencialmente sobre a democracia liberal e os novos desafios da dignidade humana, numa Europa fragmentada e em busca dos caminhos possíveis do seu federalismo político. No plano mais jurídico, o pensamento habermasiano é interessante. Mas é insuficiente. A sua tentativa de "legitimação através do consenso" deve ser complementada com outras coordenadas materiais mais decisivas. O Direito só será cabalmente pensado a partir da Constituição material e dos princípios axiológico-normativos. A perspectiva jurisprudencialista, recuperando a razão prática, parece-me mais adequada para se captar a natureza do Direito e o seu discurso tópico-problemático. Tenciono, todavia, a partir de variegadas direcções e linhas argumentativas que tenho agora em mente, aprofundar o diálogo com o grande mestre da Alemanha. A Ciência é uma construção paciente, multidisciplinar, acumulativa e sem fim! Quero aprender sempre mais e refinar, cada vez mais, a minha visão do mundo.
Qual é a missão do jurista neste transitivo presente, bastante complexa?
Para começar, o jurista (advogado, juiz, notário, consultor de empresas, etc.) não deve ser, jamais, um dócil servidor dos poderes instalados.O jurista autêntico é aquele que presta culto à deusa Justiça e aos princípios do Estado de direito constitucional. Deve conservar, sempre, o seu espírito crítico, imparcial e razoável. Mas hoje, pelo tipo de sociedade de matriz científica e globalizada que temos por aí, só um Direito prudencial, de textura aberta e judicialista, nos pode salvar.O que propomos é, em termos simples, uma autêntica transição paradigmática. Como digo aliás no livro, trata-se de encontrar-consagrar, sem tardança, uma “…outra, enfim, Juristische Methodik, (re)valorizando a retórica e a hermenêutica jurídica. Assim como a teoria da argumentação e a força impositiva e translegal dos princípios”.A função dos juristas é salvaguardar os valores, axiomas e princípios (constituintes) da “consciência axiológica geral”. Isso basta.
Que novas linhas de pesquisa, argumentação e problematização propõe no seu livro?
Este livro, uma espécie de 2.º volume do meu Ensaios Jurídicos, de 2013, adopta uma estrutura aberta e de manifesta problematização. É a metodologia mais recomendável. O Direito, tal como a advocacia (ou a magistratura), é um exercício de desassossego. O que faço nesta obra é um questionamento abrangente acerca (do significado) do Direito, da sua metodologia e deontologia, propondo, em resumo, a redescoberta das raízes retóricas e dialécticas do saber jurídico. Os juízes não decidem também segundo o método silogístico-subsuntivo. Isso é apenas um mito frágil do século XIX que o nosso Código de Processo Civil, etc., conservou inadvertidamente! O raciocínio jurídico é, pelo contrário, axiológico, analógico, prático-constituendo, circulatório e até abdutivo, desenvolvendo-se numa complexa “espiral hermenêutica”. O juiz nunca é um mero autómato. Como diria Michel Villey, a Retórica é o berço do Direito, desde a Grécia antiga. Mas é preciso complementar tudo isso com a Lógica e a Hermenêutica. Estes três elementos perfazem o verdadeiro método prático-argumentativo do Direito. É isso que os advogados fazem, de resto, nos tribunais, num determinado caso-controvérsia. O Direito é uma ciência cultural, moral e probabilística.
Neste seu livro faz o cruzamento entre Direito e Literatura e outras artes, explorando o seu lado interdisciplinar. Podia explicar como funciona?
A literatura, como explicitou um renomado autor brasileiro, serve para "existencializar o Direito". Ou seja, contribui para alargar o repertório argumentativo dos juristas e a sua necessária dimensão humanística. A relação fundamental entre o Direito e a Literatura pode ser vista de três ângulos distintos, na lição seminal de François Ost. Vou resumir, a propósito, alguns argumentos constantes do meu livro. Em primeiro lugar, temos o Direito da literatura, perspectiva com muito interesse (prático) para os advogados, como explica o jusfilósofo belga. Nesta dimensão são normalmente analisadas questões como a liberdade de expressão, a história institucional da censura, os direitos de autor ou os sistemas oficiais de marcas, para além da regulação das bibliotecas públicas, os programas escolares (e os seus conteúdos) e as políticas estatais de subsídios editoriais. Uma segunda perspectiva é o Direito como Literatura. Nesta sede ganha relevo o estudo da retórica judicial e parlamentar e, em particular, o estilo de argumentação dos advogados. Trata-se de uma perspectiva amplamente desenvolvida nos Estados Unidos da América (Ronald Dworkin, Stanley Fish, etc.) e que engloba, também, a comparação de métodos interpretativos nas obras literárias e nos textos jurídicos. Finalmente, temos o Direito na Literatura. É uma clave analítica subtil (adoptada, de resto, por François Ost) que rejeita o típico dogmatismo jurídico e uma visão meramente tecnicista, o tal “Derecho técnico”, de traça exegética, encontradiço nos diários oficiais, nos tratados universitários ou nas doutrinas e correntes jurisprudenciais seguidas, diuturnamente, pelos homens do foro. De qualquer forma, como anota ainda Ost, podemos aprender muito mais sobre falência e bancarrota lendo certas páginas de Balzac do que antologias completas de jurisprudência! O objecto do Direito na literatura é, pois, uma aprendizagem decisiva, centrada nas humanidades e, enfim, no refinamento da sensibilidade, a partir das análises, clássicas e literárias, das questões da Justiça, do Direito, do Poder e da Dignidade Humana.
Qual é o impacto das novas tecnologias ao nível do pensamento jurídico?
Este é, sem dúvida, o mundo da globalização, da interconstitucionalidade e da “galáxia da Internet”. Mas o jurista não deve ceder os seus créditos, epistémico-civilizacionais, ao “admirável mundo novo” das soluções fáceis e tecnológicas. Leiam por favor o meu livro e, sobretudo, a bibliografia ali recomendada, através da qual fui construindo, com os subtis fios de seda de Themis, um como que Manual Cívico-Jurídico de Resistência nestes tempos de noopolítica e neurociências!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1217 de 26 de Março de 2025.