Tarrafal, o Silêncio que Faltava Contar

PorManuel Brito-Semedo,31 out 2025 10:10

Jornalista e investigadora, Sandra Inês Cruz devolve voz aos últimos presos políticos de Cabo Verde, detidos no Campo de Chão Bom em 1975 – quando a liberdade já se proclamava em Portugal. No livro Tarrafal, 1975 – O Campo do Silêncio, publicado pelas Edições Afrontamento, reconstrói um dos episódios mais perturbadores da transição pós-colonial: a existência de uma prisão política activa depois do 25 de Abril. Com rigor e sensibilidade, a autora une jornalismo, história e ética para iluminar um silêncio que atravessou meio século.

O que a levou a dar voz aos últimos presos do Tarrafal? E como transformou essas memórias – cartas, fotografias e recordações familiares – numa narrativa histórica sem trair a dor e a intimidade de quem as viveu?

Não lhe chamaria narrativa histórica. Eu sou jornalista e o que aqui está é produto da minha investigação enquanto tal, sobreposta à pesquisa que desenvolvi ao longo dos últimos anos no âmbito de um doutoramento que teve por tema o esquecimento no Campo do Tarrafal. Este é apenas um dos esquecimentos integrantes da tese que considera o Campo durante todo o seu tempo de funcionamento enquanto espaço de privação de liberdade, i.e., durante os 39 anos em que, ininterruptamente, recebeu homens presos. O livro conjuga factos registados em documentos oficiais com aqueles que foram divulgados pela imprensa do arquipélago durante o “verão quente” de 1974, contribuindo para organizar temporalmente os acontecimentos que contextualizam estas prisões e os caminhos que percorreram estes homens entre o momento da sua detenção e aquele em que voltaram a ser livres. A isto acrescem os testemunhos de alguns dos últimos presos que tive oportunidade de entrevistar e das famílias que encontrei e que mostraram vontade de contar aqueles dias, mas sobretudo, as implicações que eles tiveram nas suas vidas. Recebi fotografias e documentos como provas de existências esquecidas, marginalizadas pelos discursos oficiais que vão escrevendo a história. Como recebi tranquilamente algumas (poucas) indisponibilidades para comigo regressarem ao passado. Perceber o quão dolorosa é, ainda hoje, esta memória entre alguma das famílias afectadas foi, de resto, uma confirmação do sofrimento e da falta de reparação que já me haviam transmitido todos aqueles que comigo aceitaram falar. Foram só meia dúzia de meses e aquilo não foi bem uma prisão – ouvi estas duas frases muitas vezes em Cabo Verde. Caber-nos-á perguntar: e como é que um tempo tão reduzido e, aparentemente, sem grande importância, foi responsável pelo abandono, por parte de várias famílias, da casa em que viviam, da terra em que nasceram, das ilhas que conheciam? “Exílio” foi uma palavra que registei. Os que a pronunciaram para me explicar a vida que têm e que foi escrita naquele meio ano estão aí. E contam porquê a quem quiser ouvi-los.

O Campo do Silêncio mostra que, mesmo depois do 25 de Abril, a repressão persistiu em Cabo Verde. Como explica esse paradoxo – o de uma revolução feita em nome da liberdade que continuou a prender por razões políticas?

Este livro não pretende ser uma explicação para esse aparente paradoxo. Muito melhor do que eu, enquanto cabo-verdiano, enquanto investigador e enquanto testemunha deste tempo, poderá discorrer sobre as tantas supostas contradições que fizeram os dias da transição para a independência. São, aliás, várias e reconhecidamente autorizadas as vozes que vêm trazendo a público a memória desse tempo e não faltam, em Cabo Verde, reflexões sobre as motivações, actos e consequências de anos de monopartidarismo. Portugal ajudou a abrir esse caminho nos territórios cuja separação aceitou e promoveu. Em 2024 uma cerimónia comemorativa juntou no Tarrafal os chefes de Estado dos países tocados pela prisão de Chão Bom – Cabo Verde, Portugal, Angola e Guiné-Bissau. Aquilo a que assistimos foi, com mais pompa do que habitualmente (pelo meio século que então passava sobre o 25 de Abril) a uma legitimação transnacional da confusão que se institucionalizou, de modo a estender ao território a ideia de liberdade num tempo em que, de facto, ela não existiu. É como pintar um quadro antigo, desbotado, com cores novas, diferentes das primitivas. Ficará mais bonito? Talvez, mas na verdade o original não era bem assim. O 25 de Abril não significou em Cabo Verde o mesmo que significou em Portugal e isso não é novidade para ninguém. E por mais que o 1º de Maio de 1974 tenha assistido à libertação dos presos políticos que continuavam encarcerados no Tarrafal, a data não marca o início da liberdade nem da democracia no arquipélago. Pelo contrário, aí começa a construir-se o tempo em que os caminhos haviam de estreitar-se até serem reduzidos a uma só via de acesso ao futuro – uma independência gerida por um único partido, sem lugar para vozes nem pensamentos dissonantes. Mas disso, sabe muito mais do que eu. O Campo do Silêncio foi escrito com um único objetivo – o de acrescentar memória ao Campo do Tarrafal, resgatando, de modos diversos, nomes, factos e histórias, documentando um tempo de privação de liberdade que tem sido desconsiderado, tanto em Portugal como em Cabo Verde.

A sua escrita cruza investigação histórica e narrativa jornalística. De que modo o jornalismo – com o seu olhar directo e ético – influenciou a forma como abordou este tema de silêncio e esquecimento?

Movem-me os factos. E aqueles que juntei durante a investigação académica com vista à escrita da minha tese de doutoramento são suficientes para mostrar que o Tarrafal é uma história incompleta. Enquanto jornalista – e na posse de tantos factos descartados pelas narrativas conhecidas do Campo de Cabo Verde – posso questionar a história. O meu interesse pelo esquecimento que continua presente nas leituras do degredo cabo-verdiano nasce justamente da percepção de que há múltiplos factos por considerar na história desta prisão. Em Portugal, isso justificar-se-á pelo tempo em que começou a ser construída a memória do Tarrafal, enquanto lugar de repressão, logo a seguir ao nascimento da democracia. Importava dar a conhecer e manter vivos no espaço público os nomes daqueles que combateram a ditadura e se sacrificaram pela liberdade. Foram esses os nomes que sobreviveram, que o tempo cuidou e que o presente comemora. Os outros – e são muitos – perderam-se pelo caminho, ficaram esquecidos em papéis arquivados. Não deixam, porém, de fazer parte da história do Campo. Só ainda não foram contados. Em Cabo Verde, a ausência do Tarrafal de 1974/1975 da memória colectiva não será um esquecimento, mas antes um silêncio decretado. A consolidação de uma desejada hegemonia passou também (e continua a passar) pela comemoração dos libertadores. Integrar o relato destas prisões na narrativa oficial levaria a um confronto de memórias que o poder político quer, compreensivelmente, evitar. Como acomodar na mesma história os heróis da liberdade e aqueles que lhes apontam o dedo, nomeando alguns, dentre eles, como seus captores? Olhando o Campo na perspectiva da preservação e expansão da sua memória, como investigadora e como jornalista, nada disto determina a organização dos factos que resgatei do passado – dos arquivos e da memória. Independentemente das questões políticas que sempre lhe andarão coladas, é o Tarrafal enquanto espaço de privação de liberdade que me interessa. Quem foram os homens que prendeu? Porquê? Como? Quando entraram? Quando saíram? Não são estas as perguntas que arrumam as notícias? Não é esta a base do jornalismo?

Na sua visão, o que falta para que o Tarrafal se torne um espaço vivo de consciência, capaz de integrar as três memórias – a dos antifascistas portugueses, a dos nacionalistas africanos e a dos cabo-verdianos da independência?

Falta despolitizar a questão e olhar para o Tarrafal na perspectiva da memória. Contar o Campo sem sonegar factos, admitir a coexistência de múltiplas verdades na memória colectiva que se vai consolidando seria uma prova de maturidade política, um passo importante no percurso democrático. A candidatura do Campo a Património Mundial da Humanidade, pelo que percebo, está de novo na agenda. Não lhe parece incómodo haver registo público de “outros Tarrafais” que provavelmente voltarão a ser desconsiderados nos documentos entregues à UNESCO? Imagino que a ideia continue a ser, unicamente, a patrimonialização de uma prisão de antifascistas e anticolonialistas, mas era eticamente admirável que se começassem a derrubar alguns muros e se deixasse, de uma vez por todas, o Tarrafal respirar alguma liberdade.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,31 out 2025 10:10

Editado porAndre Amaral  em  31 out 2025 23:22

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