Dir-se-ia que este tema nada tem de novo, dado que desde a Filosofia Antiga se procedia a uma investigação sobre o Ser. Contudo, Heidegger considerou ter havido um esquecimento do Ser – ou do fundamento – na problemática filosófica, tanto em autores antigos como modernos, porque a Ontologia incidiu sobre os seres ou entes, confundindo-os com o Ser que os engloba, e foi propondo sucessivos fundamentos para o pensamento, como as Ideias ou Formas, em Platão, a Substância, em Aristóteles, o ser humano, no humanismo renascentista, a razão, no racionalismo, ou a ciência, no positivismo, visando alcançar a totalidade do saber, mas sem atingi-la.
Qualquer destas propostas é unilateral, tentando reduzir o real a uma das suas componentes, como, por exemplo, limitando o pensamento ao estudo da condição humana, ou seja, a uma Antropologia filosófica, como se esta fosse auto-suficiente. Na sua Carta sobre o humanismo,Heidegger analisa as diversas correntes baseadas na auto-suficiência do ser humano, considerando-as como equívocas, porque o factor humano só se compreende na sua abertura ao Ser, enquanto ser no mundo. Por isso recusou a designação de existencialismo para identificar o seu pensamento, embora esta se tenha tornado corrente e figure nas histórias da filosofia: a melhor designação seria a de Ontologia fundamental. A sua obra maior, O Ser e o Tempo, incide sobre a existência humana, mas enquanto relação com o Ser ou Ser-aí (Dasein).
Heidegger partilha com Kierkegaard a concepção da filosofia como reflexão a partir da existência, não redutível à razão ou à ciência experimental, mas vai também partir da fenomenologia – corrente fundada por Edmund Husserl, que pretendia refundar a filosofia voltando às próprias coisas. As suas primeiras obras colocavam o mundo “entre parêntesis” para estudar as estruturas do conhecimento, mas o chamado “último Husserl” fez o inverso, procurando pensar a vida sem a reduzir às abstracções matemáticas da ciência moderna, tornando-se numa referência para a filosofia existencial.
A problematização do Ser como permanência, nas ideias platónicas ou na substância aristotélica – o que permanece para lá da mudança – afastou a Ontologia da temporalidade, que é uma das suas principais condições. Vivemos no tempo e no mundo, a própria noção husserliana de intencionalidade mostra como a consciência está ligada ao mundo, é sempre consciência de alguma coisa. Mas a ligação às coisas ou seres é particularizada ou ôntica – refere-se às coisas, mas não ao campo que as ultrapassa e envolve – o Ser – designado como ontológico. A nossa condição é mundana,existimos como modos de ser no mundo (In-der-Welt-Sein). A analítica existencial, efectuada por Heidegger em O Ser e o Tempo, é o processo para entendermos a nossa situação no mundo. A existência massificada e vulgarizada da vida quotidiana afasta-nos da existência autêntica como seres humanos que não se perdem no anonimato das massas, mas se descobrem e reconhecem como únicas, na sua singularidade.
A história da filosofia é a história do Ser, que não se efectua progressivamente (como em Hegel), mas remontando às origens e fundamentos do pensar (daí a designação de Ontologia Fundamental). Os filósofos pré-socráticos estavam mais perto do Ser do que os modernos, como se constata na sua cosmologia. A ciência moderna representa um modo de nos afastar do vivido, em proveito de uma visão matemática e quantitativa ou “calculadora” do mundo – o conceito de técnica é objecto de uma crítica por Heidegger, formando uma das correntes da filosofia da técnica. Precisamos de meditar e não apenas calcular ou reduzir o mundo às ciências experimentais.
As últimas obras de Heidegger consistem em ensaios reunidos sob o título de Questões. Constituem modos de questionar os fundamentos da filosofia, partindo de conceitos do pensamento helénico, como os de Physis (Natureza), Arquê, Aletheia (Verdade). Afasta-se do conceito moderno de verdade como adequação entre o pensamento e as coisas, para a conceber como desocultação ou desvendamento do mundo e do Ser.
Heidegger não se limitou a retomar os conceitos filosóficos existentes, mas reinventou o léxico da filosofia com novos conceitos. Quando se diz que a filosofia ensina a pensar, isso não deve significar apenas reproduzir os seus conceitos historicamente formados, mas criar novos modos de reflexão – processo para o qual o pensamento heideggeriano pode ser uma referência maior.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1250 de 12 de Novembro de 2025.
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