Conta-se que Alekhine, certa vez, no mais alto apuro, perguntou ao seu arqui-rival Bogoljubov, com quem não trocava uma única palavra havia vários anos, se lhe podia indicar onde ficava a casa de banho. Bogo pensou duas vezes antes de responder e disse por fim, mas sem tirar os olhos da partida, que, diga-se de passagem, não lhe era muito favorável: “Meta-se à direita, depois vá sempre em frente e quando ver uma porta onde estiver escrito Gentleman, é porque chegou à casa de banho. Você sabe mais do que eu que não é nenhum gentleman, mas não se assuste e entre tranquilamente. Isto a propósito de cavalheirismo, porque a história continua, desta maneira: apesar de toda a sua genialidade, um dia Alekhine acabou por morrer. Às portas do Empíreo eterno, São Pedro comunica-lhe cortesmente que xadrezistas não tinham entrada no céu e fecha-lhe a porta. Mas antes disso Alekhine reconhece o seu antigo rival terreno cercado de anjos e o mestre pergunta – “mas esse ali não é Bogoljubov. É, responde São Pedro, mas não é xadrezista. Mau jogador sim, contesta Aleknine, mas jogador na mesma.
É altura de abrirmos aqui um parêntese para esclarecer duas coisas. Primeiro, as anedotas de xadrez nunca foram brilhantes e esta aqui é das poucas que poderá interessar minimamente ao não praticante deste silencioso jogo. Segundo, Bogoljubov, ou curtamente Bogo, como era conhecido pelos seus pares, foi durante a década de 20 do século passado o segundo melhor jogador do mundo, disputando com Alekhine dois matches para o título de campeão mundial que ele perdeu com todo o som e fúria. Feito este reparo, regressemos ao nosso tema – o cavalheirismo no xadrez.
Na conhecida partida Steinitz-Von x Bardeleben, que recebeu o primeiro prémio de beleza do torneio de Hastings, em 1895, ocorreu um lamentável incidente, quando o fundador do xadrez moderno, apesar da avançada idade, calculava uma larga combinação introduzida com um sacrifício de qualidade, após o qual o rei preto inicia uma longa peregrinação até à morte.
Steinitz - Von Bardeleben
Hastings 1895
Posição após…f6
1.Txe7+ Rf8 [1...Dxe7 2.Txc8+; 1...Rxe7 2.Te1+ Rd6 3.Db4+ Rc7 4.Tc1+ Rb8 5.Df4+ Tc7 6.Ce6] 2.Tf7+ Rg8 3.Tg7+ Rh8 4.Txh7+
Neste ponto Von Bardeleben dá-se conta do inevitável mate que lhe espera em poucos lances. Em lugar de declarar a derrota ao adversário, levantou-se tranquilamente e abandonou a sala de jogo, para desespero da assistência que aguardava impacientemente o desfecho da combinação. Quando todos e o próprio Steinitz se convenceu que Von Bardeleben lhe tinha pregado uma péssima partida, aquele mostrou aos espectadores o remate final:
Rg8 5.Tg7+ Rh8 [5...Rf8 6.Ch7+] 6.Dh4+ Rxg7 7.Dh7+ Rf8 8.Dh8+ Re7 9.Dg7+ Re8 10.Dg8+ Re7 11.Df7+ Rd8 12.Df8+ De8 13.Cf7+ Rd7 14.Dd6#
O público aplaudiu longamente a magnífica combinação de mate em 14 lances. Foi o canto de cisne do velho mestre que pouco tempo depois entregava a alma ao Criador.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 897 de 6 de Fevereiro de 2019.