É o xadrez um jogo de cavalheiros?

PorAntónio Monteiro,10 fev 2019 7:51

​O xadrez foi sempre um jogo de cavalheiros, ou, pelo menos, assim tem sido assim considerado há já vários séculos. Sem dúvida, nem os melhores jogadores têm podido cumprir sempre com uma ou outra elementar norma de cortesia. Dar a mão ao começar e ao terminar uma partida, mas também ao abandoná-la parece algo de muito lógico.

Conta-se que Alekhine, certa vez, no mais alto apuro, perguntou ao seu arqui-rival Bogoljubov, com quem não trocava uma única palavra havia vários anos, se lhe podia indicar onde ficava a casa de banho. Bogo pensou duas vezes antes de responder e disse por fim, mas sem tirar os olhos da partida, que, diga-se de passagem, não lhe era muito favorável: “Meta-se à direita, depois vá sempre em frente e quando ver uma porta onde estiver escrito Gentleman, é porque chegou à casa de banho. Você sabe mais do que eu que não é nenhum gentleman, mas não se assuste e entre tranquilamente. Isto a propósito de cavalheirismo, porque a história continua, desta maneira: apesar de toda a sua genialidade, um dia Alekhine acabou por morrer. Às portas do Empíreo eterno, São Pedro comunica-lhe cortesmente que xadrezistas não tinham entrada no céu e fecha-lhe a porta. Mas antes disso Alekhine reconhece o seu antigo rival terreno cercado de anjos e o mestre pergunta – “mas esse ali não é Bogoljubov. É, responde São Pedro, mas não é xadrezista. Mau jogador sim, contesta Aleknine, mas jogador na mesma.

É altura de abrirmos aqui um parêntese para esclarecer duas coisas. Primeiro, as anedotas de xadrez nunca foram brilhantes e esta aqui é das poucas que poderá interessar minimamente ao não praticante deste silencioso jogo. Segundo, Bogoljubov, ou curtamente Bogo, como era conhecido pelos seus pares, foi durante a década de 20 do século passado o segundo melhor jogador do mundo, disputando com Alekhine dois matches para o título de campeão mundial que ele perdeu com todo o som e fúria. Feito este reparo, regressemos ao nosso tema – o cavalheirismo no xadrez.

Na conhecida partida Steinitz-Von x Bardeleben, que recebeu o primeiro prémio de beleza do torneio de Hastings, em 1895, ocorreu um lamentável incidente, quando o fundador do xadrez moderno, apesar da avançada idade, calculava uma larga combinação introduzida com um sacrifício de qualidade, após o qual o rei preto inicia uma longa peregrinação até à morte.

Steinitz - Von Bardeleben

Hastings 1895

Posição após...f6
Posição após...f6

Posição após…f6

1.Txe7+ Rf8 [1...Dxe7 2.Txc8+; 1...Rxe7 2.Te1+ Rd6 3.Db4+ Rc7 4.Tc1+ Rb8 5.Df4+ Tc7 6.Ce6] 2.Tf7+ Rg8 3.Tg7+ Rh8 4.Txh7+

Neste ponto Von Bardeleben dá-se conta do inevitável mate que lhe espera em poucos lances. Em lugar de declarar a derrota ao adversário, levantou-se tranquilamente e abandonou a sala de jogo, para desespero da assistência que aguardava impacientemente o desfecho da combinação. Quando todos e o próprio Steinitz se convenceu que Von Bardeleben lhe tinha pregado uma péssima partida, aquele mostrou aos espectadores o remate final:

Rg8 5.Tg7+ Rh8 [5...Rf8 6.Ch7+] 6.Dh4+ Rxg7 7.Dh7+ Rf8 8.Dh8+ Re7 9.Dg7+ Re8 10.Dg8+ Re7 11.Df7+ Rd8 12.Df8+ De8 13.Cf7+ Rd7 14.Dd6#

O público aplaudiu longamente a magnífica combinação de mate em 14 lances. Foi o canto de cisne do velho mestre que pouco tempo depois entregava a alma ao Criador.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 897 de 6 de Fevereiro de 2019.

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Autoria:António Monteiro,10 fev 2019 7:51

Editado porFretson Rocha  em  10 fev 2019 7:52

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