A tia de Najdorf, o milionário suíço e o peão b2

PorAntónio Monteiro,16 fev 2019 12:20

​O José Armando Araújo tinha-me proposto sábado à tarde uma partida de xadrez num hotel da capital. Sentado à mesa, enquanto ele não chegava e acabou mesmo por não aparecer, inventei esta história que podia ter acontecido na realidade.

Nessa onírica tarde jogamos uma Caro-Kann da qual se diz ser uma defesa muito segura, mas em contrapartida oferece poucas perspectivas de vitória às pretas. Acho que a sua principal virtude é libertar já nos primeiros lances o bispo branco das pretas que na Defesa Francesa constitui um quebra-cabeças para as pretas. Como escrevi na crónica anterior, o xadrez é um jogo de cavalheiros e por isso o silêncio é uma regra básica que deve ser observada durante o jogo, sobretudo quando o adversário está a pensar.

Tendo isto em devida conta fiz a minha viagem de costume: pensei fugazmente na novela Friendes of the Friends do melancólico Henry James, depois veio-me à memória o início de “Cem Anos de Solidão” ‘muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro ...’. Sem transição pensei também no célebre início de “Chiquinho’” ‘Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto’ e voltei a pensar no romance “O Processo” que nos catapulta logo à entrada no labiríntico mundo de Kafka, um mundo de castigos enigmáticos e de culpas indecifráveis: ‘Alguém deve ter caluniado Josef K., pois sem que tivesse cometido algum crime foi preso uma manhã’.

Por fim ocorreu-me um texto sobre Miguel Najdorf publicado nesta coluna há já algum tempo. Tinha escrito que o falecido Grande Mestre Najdorf era um grande gentleman do xadrez e que repetia cortesmente “a melhor” ante qualquer jogada do adversário, ou ao capturar um peão ao seu rival “eu tinha uma tia que dizia melhor peão a mais do que peão a menos“.

Mesmo atribuída à insuspeita tia, o leitor pode imaginar que a desculpa de Don Miguel para subtrair uma figura ao seu adversário roça o pior dos cinismos…Neste ponto, o C. que assistia ao jogo assinalou-me com o dedo que José Armando Araújo tinha feito seu lance. “O melhor”, disse eu maquinalmente, esboçando um sorriso que eles não compreenderam de imediato.

Najdorf à parte, mas na verdade era o melhor lance, pois custou-me um importante peão central. Não resisti e logo de seguida citei em voz alta a máxima da najdorfiana tia.

O Armando com o seu peão a mais achou muita graça à chalaça e eu aproveitei para contar a tal anedota do milionário e do peão em b2. C. tomou a rédea ao meu discurso para acrescentar que a história era verídica e que se tratava de um milionário suiço que deixara ao filho em testamento milhões de francos e outros bens sob uma única condição – nunca tomar o peão b2, “mesmo que seja bom”.

Para os menos dados a estas teorias seja dito que em duas variantes, uma da Defesa Siciliana, outra da Índia do Rei, as pretas oferecem às brancas o tal peão que via de regra é sempre recusado.

A anedota reside justamente no facto de o milionário suíço ter excedido os limites do razoável ao proibir testamentariamente ao seu filho a tomada do peão b2 – mesmo que seja bom. A história não reza se o filho aceitou ou não o testamento e o mais provável é que o tenha recusado, já que aceitando esta cláusula teria de renunciar ao milenário jogo do xadrez, na medida em que a máxima da tia de Najdorf, segundo a qual é melhor ter peão a mais do que peão a menos, é quase sempre válida, salvo raras excepções que o incauto pai tomou por regra.

E a partida da semana que escolhemos para os nossos leitores ilustra precisamente aquilo que no xadrez se chama o triunfo do espírito sobre a matéria. Na partida jogada na Polónia, em 1929, Najdorf sacrifica não só peões como ainda quatro peças antes de conseguir um dos mais espectaculares mates da história do xadrez. É conhecida como a “Imortal Polaca”.


Glucksberg vs Miguel Najdorf

“The Polish Immortal”

Defesa Holandesa, Varsóvia (1929)

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Queira encontrar o lance que imortaliza esta partida

1. d4 f5 2. c4 Cf6 3. Cc3 e6 4. Cf3 d5 5. e3 c6 6. Bd3 Bd6 7. O-O O-O 8. Ce2 Cbd7 9. Cg5 Bh2 10. Rh1 Cg4 11. f4 De8 12. g3 Dh5 13. Rg2 Bg1 14. Cg1 Dh2 15. Rf3 e5 16. de5 Cde517. fe5 Ce5 18. Rf4 Cg6 19. Rf3 f4 20. ef4 Bg4 21. Rg4 Ce5 2. fe5 h5#


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.

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Autoria:António Monteiro,16 fev 2019 12:20

Editado porDulcina Mendes  em  17 fev 2019 9:30

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