Xadrez e Chuva

PorFrancisco Carapinha,21 set 2020 7:26

As recentes chuvadas e inundações que aconteceram recentemente em Cabo Verde, trouxeram-me à memória outras inundações e chuvadas da minha juventude.

Sou natural de uma zona atravessada pelo rio Tejo que, no Inverno, é bastante vulnerável a inundações, a que nós chamamos de “cheias”. A intensidade das chuvas aliada a algumas descargas das barragens que se encontram ao longo do leito do rio, muitas vezes fazem as suas margens transbordar e cobrir de água os campos agrícolas, as estradas e ruas, as linhas de caminho de ferro, etc.

Nestas alturas é frequente ouvir falar de lugares isolados, de ver vinhas, milheirais e outras produções agrícolas completamente submersas pelas águas descontroladas, que passam por cima de tudo sem pedir autorização a ninguém; é também nestas alturas que em algumas localidades, como que querendo imitar Veneza, só se pode andar de barco. Em algumas casas, as janelas, porque ficam mais próximas do nível da água, substituem as portas impedidas de abrir pelas forças invasoras que enchem as ruas.

Em tempo de cheias era frequente os campinos deixarem as suas famílias entregues a si mesmas, para irem salvar os touros que estavam á mercê das águas enraivecidas. A quem lhes perguntasse porque raio tinham ido salvar os animais deixando indefesos mulher e filhos, a resposta vinha com a naturalidade de quem está preparado para enfrentar qualquer fatalidade:

“Se não salvasse os touros depois como é que dava de comer à família?”

Mas enquanto no passado Domingo ia chovendo, a memória também me foi transportando para outros cenários e outras cenas, umas vividas e outras sonhadas, de uma altura em que não havia internet, a televisão era a preto e branco e só tinha 2 canais que funcionavam umas horas por dia.

As tertúlias passadas no café com os amigos, enquanto a chuva caia na rua, nós frente a um qualquer tabuleiro de xadrez íamos matraqueando as peças e por vezes o relógio, em partidas animadas onde não faltavam os copos de “Macieira” para aquecer o corpo e o espírito. Muitas vezes, com a desculpa de que chovia a cântaros e não havia condições de retornar a casa, o espírito aquecia de mais e os cavalos começam a saltar em duplicado e o Bispos a jogarem em casas da mesma cor. É claro que quando isso acontecia, a situação era rapidamente resolvida, terminando com mais uma rodada de Macieira.

Quando a chuva resolvia parar, lá íamos puxando até casa, muitas vezes com o vento a soprar um bocado mais forte, empurrando-nos contra as paredes e obrigando-nos a cambalear até chegar à porta de casa. Já deitado, eram as peças e o tabuleiro de xadrez que rodavam na cabeça em análise ás partidas perdidas e em confronto com a “Macieira” consumida. E assim se adormecia para no outro dia acordar e tudo voltar ao normal, caso a chuva assim o permitisse.

Esta foi a fase em que era mais jovem e ainda estudante. A fase seguinte, já mais adulto, a tertúlia no café foi substituída pelo convívio em casa. O tabuleiro e as peças de xadrez lá estavam, só que agora acompanhadas pelo brandy ou pela aguardente velha, servidos em balão aquecido e por umas fumaças de uma cigarrilha ou de charuto.

Nestas partidas caseiras, os relógios eram deixados de parte, para que pudessem ser bem saboreadas e houvesse tempo para que o balão esvaziasse e voltasse á temperatura normal.

Geralmente, uma lareira aquecia o local e o crepitar do fogo competia com as batidas da chuva que caia lá fora e ia inundando o que lhe apetecia.

Depois de terminada a partida, era tempo de voltar a aquecer o balão, onde lhe era colocada a habitual bebida espirituosa, de forma a que houvesse combustível suficiente para que a análise, do que foi jogado anteriormente, pudesse ser emotiva e participativa.

A cama ficava a dois passos mas, frequentemente, o excesso de combustível, dificultava a caminhada do local de convívio até ao quarto e a tosse, provocada pelo excesso de fumo das cigarrilhas ou dos charutos queimados, ainda tornava mais difícil a locomoção, obrigando a frequentes interrupções entre as passadas. E quando isto acontecia, era quase certo que as peças de xadrez, voltavam a rodopiar na cabeça enquanto tentava adormecer e ia ouvindo a chuva a cair.

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Durante a chuvada que caiu no Domingo passado, tentei reavivar tempos idos. Assim, aproveitando as tecnologias actuais, enquanto ouvia o cair da chuva, fui jogando xadrez online enquanto ia saboreando um Gin Tónico.

Mas, o reavivamento, não foi satisfatório: o som do cair da chuva podia ser igual, mas o substituto da ”Macieira” das tertúlias e do brandy e da aguardente velha do convívio, não conseguiu atingir os níveis dos substituídos.

Mas, acima de tudo, faltava o frio que era necessário aquecer.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 981 de 16 de Setembro de 2020.

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Autoria:Francisco Carapinha,21 set 2020 7:26

Editado porSara Almeida  em  21 set 2020 7:26

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