O jogo dos copos

PorFrancisco Carapinha,22 mar 2021 7:03

​A minha chegada definitiva a Cabo Verde aconteceu, há precisamente 20 anos.

Foi no mês de Março do ano de 2001 que desembarquei no aeroporto de S. Pedro, acompanhado de dois enormes “Bobis” (o nome com que os meus filhos decidiram baptizar as grotestas malas que transportavam parte dos meus pertences, e que eram puxadas por uma espécie de trela, daí a sugestão do nome canino).

Nesses “gigantes caninos”, além do que considerei mais essencial para iniciar uma nova etapa da minha vida, vinham também, muito sonhos e expectativas, tão necessárias, como dizia o poeta, para que o mundo pule e avance como bola colorida nas mãos de uma criança.

Nesses sonhos, não sei se lá estaria o xadrez, mas se estivesse, certamente que se encontrava arrumadinho num canto esperando uma oportunidade para saltar cá para fora.

Como calculam, essa oportunidade aconteceu, permitindo, inclusivamente, que as minhas histórias possam aqui ser contadas.

Mas não é disso que hoje pretendo aqui falar.

Desde que me transferi para terras crioulas foram necessários, quase 10 anos, para que voltasse a sentir, numa noite de Natal, o quente da lareira e o cheiro dos fritos da época, acabados de fazer pelas mãos da minha mãe, ou seja, durante quase uma década, estive sem passar o Natal em Portugal.

Passado esse tempo todo, lá estava eu, em casa de minha mãe, para mais uma noite de Natal, de tal modo fria que não cheguei a perceber se era eu que já estava desabituado daquelas temperaturas, ou se realmente os termómetros estavam a descer mais que o habitual.

Durante a tradicional distribuição de presentes, fui brindado com um jogo de xadrez muito peculiar: todo em vidro em que as peças eram pequenos copos pintados com a simbologia de cada uma das respectivas peças.

Aberto o presente e depois de ter procedido á inspecção inicial, achei por bem que o jogo teria de ser estreado nessa noite, altura em que a casa estava aquecida pelos cepos queimados na lareira e os corpos iam aquecendo com os liquidos ingeridos.

Este era o ambiente e o momento ideal para disputar uma partida de xadrez de copos.

Olhando para os convivas, facilmente deduzi que o adversário só poderia ser o meu cunhado, rapaz com bastante experiência em levantar vidro e que aceitou, de imediato, o desafio que lhe lancei.

Além das habituais regras de um qualquer jogo de xadrez, nesta partida natalícia, dada a especificidade das peças e do momento, decidi introduzir um nova regra: as peças seriam enchidas com liquido e quem tomasse uma peça (vulgarmente designado por comer), teria de ingerir o seu conteúdo, regra esta que foi sintetizada com a frase “quem come, bebe”.

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Para encher os copos, ou melhor, as peças, como não poderia deixar de ser, foi eleito um grogue velho, que eu tinha daqui levado, um hábito já adquirido pelas influências dos naturais destas ilhas crioulas, que não viajam sem se fazer acompanhar deste precioso nectar, tal qual o Asterix com a poção mágica, quando viaja para missões de risco.

Assim, enquanto lá fora um manto branco de geada, ia cobrindo tudo o que encontrava, eu e o meu cunhado, no calor de casa, lá íamos comendo e bebendo as peças de um animado jogo que se ia prolongando com a diminuição das capacidades e rapidez de cálculo dos seus intervenientes, motivadas pelo efeito do recheio das peças que iam saltando para fora do tabuleiro.

O resultado final deste jogo de copos é fácil de adivinhar, além da minha vitória no tabuleiro, onde naturalmente, por questões de força de jogo, consegui devorar mais peças que o meu adversário, acabamos por ambos os contendores ser derrotados pela quantidade de líquido ingerido durante tão agradável partida.

Da mesa de jogo até á cama, era uma pequena distância que, nessa noite, teve de ser percorrida com alguma lentidão, pois as pernas pareciam que tinha adquirido vontade própria.

Mas o problema maior, deste jogo de copos, foi o dia seguinte, dia de Natal, em que tinha previsto levantar-me cedo para escrever e enviar para este jornal, a crónica a ser publicada nessa semana.

A forte dor de “tola” e o agreste sabor a papel de música, fruto de um jogo tão “ensopado”, não me estavam a deixar cumprir as minhas obrigações, que só com alguma insistência e sacrifício, algumas horas depois do inicialmente previsto, consegui cumprir.

Ficam assim, os estimados leitores, a saber que a minha crónica publicada neste jornal, dias depois do Natal de 2011, foi escrita ainda sobre o efeito da poção mágica crioula, tal qual uma vacina contra a tristeza e da qual suponho existirem doses suficientes para cobrir 20, 70 ou até 100% das almas cabo-verdianas, desde que não seja administrada em excesso, que se evitem as falsificações e se tenha consciência e conhecimento das contra-indicações.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1007 de 17 de Março de 2021.  

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Autoria:Francisco Carapinha,22 mar 2021 7:03

Editado porAndre Amaral  em  22 mar 2021 7:03

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