Quando Yorgan de Castro era criança não imaginava que um dia seria lutador de artes marciais. Não imaginava, nem podia fazê-lo pois só se deseja o que se conhece…
Nascido em Mindelo em 1986, filho de pai português residente em São Vicente e mãe da Praia, viveu nestes dois pólos, e também na ilha do Sal. Mas foi na capital que passou mais tempo. “Mudávamos muito de casa. Cresci na Praia toda”, recorda.
Na altura, praticamente não se falava em artes marciais. O futebol reinava nas conversas e nas actividades desportivas e brincadeiras dos miúdos.
Cresceu, mudou-se para Lisboa e foi aí, quando tinha 21 anos, que, através de um amigo, entrou no kickboxing.
“Fui com um grande amigo meu, José Oliveira, o Bogas, que foi o meu primeiro professor. Ele convidou-me a ir treinar no seu ginásio, eu fui e apaixonei-me logo”, conta.
Mesmo gostando, no início, para Yorgan que trabalha em outras áreas, este desporto era só uma forma de trabalhar o seu corpo e melhorar a auto-estima, mas rapidamente lhe tomou o gosto.
“Em 6 meses já estava a lutar”.
Bogas, que também era atleta, incentiva-o e ia endurecendo o treino que se realizava três vezes por semana. Dizia: ‘tu levas jeito para isso, vamos lá, luta’.
Yorgan perdeu as primeiras competições, mas continuou a melhorar, a progredir.
“Enquanto estava a fazer os treinos, trabalhava, estudava. Trabalhei na pro-seguro no Estádio da Luz, durante anos. Também trabalhei na restauração. No início é sempre difícil” viver do desporto, observa.
Estava em Portugal havia cinco anos, casado, com trabalho, casa e já atleta do Benfica (ainda hoje é) quando um tio, que vivia nos Estados Unidos e era também apaixonado pelas artes marciais viu o seu empenho. ‘Se queres mesmo continuar nos desportos de combate, levar isso a sério, o melhor é vires cá’, aconselhou.
E Yorgan foi. Pensou “acho que tenho um propósito que é lutar. Eu consigo fazer isso para viver” e decidiu seguir o conselho do tio.
Ele e a esposa largaram tudo e rumaram para Brockton, esse pedaço de Cabo Verde na América, onde estava a sua família emigrada.
Hoje mora em Fall River, também em Massachusetts.
MMA
Quando Yorgan de Castro chegou aos Estados Unidos, em finais de 2012 deparou-se com uma nova cultura, uma nova língua, mas também com as dificuldades próprias de quem tem de ganhar a vida.
“Tive de ir trabalhar, primeiro na construção, depois na restauração, trabalhei também como jardineiro”, recorda.
Por indicação do tio começou a treinar no ginásio Lauzon MMA. Apesar das dificuldades com a língua, adaptou-se facilmente e encontrou aqui a sua verdadeira vocação desportiva: Artes Marciais Mistas (MMA, da sigla em inglês).
Na MMA, como o nome indica, usam-se diferentes tipos de artes marciais e de combate como kickboxing, taekwondo, judo, karaté, etc. O importante é que se conjuguem diferente tipos de arte: combate em pé, luta de agarramento e luta no chão. Ou seja, MMA é uma conjugação de diferentes tipos de combate.
Yorgan passou assim do kickboxing para a MMA, integrando na sua luta, além daquela arte marcial, o Wrestling e Jiu-Jitsu.
Com cerca de um ano de treino, começou, em 2014, a participar em competições, como amador. Depois, no Verão de 2017 entrou na luta profissional e, pouco depois, “já estava no UFC”.
UFC E Eagle FC
Quem já ouviu falar de MMA, certamente também ouviu falar da Ultimate Fighting Championship (UFC) a mais popular organização de MMA, que produz eventos por todo o mundo.
“É tipo a Liga dos Campeões”, explica Yorgan de Castro, recorrendo a uma referência mais conhecida do grande público.
Em Outubro de 2019, o atleta estreava-se então, “como o realizar de um sonho”, no octógono (ringue) da UFC. Finalmente, podia também largar o trabalho, o plano B, e viver da MMA.
Nessa primeira luta na UFC, que foi também a que mais o marcou, combateu na Austrália contra o australiano Justin Tafa.
“Tive de lutar conta o estádio todo”, brinca Yorgan.
No recinto, entre o público, estavam 57 mil australianos e apenas uma pessoa a torcer por Yorgan: a sua esposa.
Mas esta foi, considera, a sua melhor luta. Venceu em apenas 2 minutos, por Knockout. Uma estreia em grande que lhe valeu também o título de Performance da Noite.
Seguiram-se outras lutas – não muitas porque um lutador de MMA não faz mais do que 3 a 4 combates por ano –, já em meio da pandemia de COVID-19 e dos confinamentos que buliram com o mundo dos lutadores e da MMA.
Ninguém queria lutar. 20 atletas da UFC acabaram por aceitar e Yorgan foi um deles.
“Foi uma fase em que, hoje, eu faria diferente. Eu lutei duas vezes durante a covid, sem treino, porque os ginásios estavam todos fechados. Corria sozinho na rua”.
Lutou, uma vez em Las Vegas e outra numa ilha em Abu Dhabi, comprada pelo presidente da UFC, Dana White. Não havia público. Os combates ressentiram a falta de treino. Perdeu ambas as lutas.
Entretanto, em 2021, Yorgan de Castro saiu da UFC e passou a competir na Eagle Fighting Champions (Eagle FC), uma organização semelhante criada pelo russo Khabib Nurmagomedov, ele próprio o antigo campeão da UFC. Este ano, fez dois combates que venceu (em Janeiro e Maio).
“Ia lutar pelo cinto da Eagle FC no dia 16 de Outubro, mas [o combate] foi adiado por causa da guerra”, conta. A nova data prevista é Março ou Abril, em Miami.
Ser lutador
Se para Yorgan a primeira vez que lutou na UFC, foi o seu melhor combate, o pior foi o que fez mais recentemente, já na Eagle FC. Entre ambos, há combates que perdeu, mas que avalia como “boas lutas”.
No passado mês de Maio defrontou Júnior dos Santos, brasileiro, antigo campeão da UFC, e muito, muito experiente. Yorgan tem 12 lutas profissionais, Júnior mais de 30.
“Dividir o octógono” com Júnior dos Santos pareceu mais um realizar de um sonho para Yorgan que nunca imaginou lutar contra essa “personalidade”. Foi também uma luta difícil e o adversário magoou-se no 3.º assalto.
Yorgan venceu assim por “Nocaute Técnico (lesão no ombro)”, mas o que leva desta luta não é essa vitória, senão todo o aprendizado.
Júnior dos Santos “é um exemplo que mostra que aquilo que se costuma dizer de que a luta é só físico e agressividade não é verdade. Ele é um lutador muito inteligente, difícil de tocar. Sempre que eu ia, ele não estava lá”.
De facto, não basta ter físico e saber lutar. Nas MMA, tal como nos outros desportos, é preciso um conjunto de outras características que podem ser decisivas.
Assim, de acordo com Yorgan de Castro, um lutador de MMA tem de ter “muita calma e inteligência”.
“Tens, não só de prever os golpes, como também a antecipação do próprio adversário. Montas um plano, fazes um estudo do adversário, mas ele aparece-te totalmente diferente porque também te estuda. Então, o adaptar-se ao momento é que conta muito. Uma pessoa tem de estar preparada fisica, mas também mentalmente”, explica.
Entretanto, subir ao ringue é sempre um momento de adrenalina. Mas não de medo. “O medo vem, se calhar, da falta de preparação. Como tudo na vida, se estás preparado e fazes o teu trabalho bem, podes ter algum receio, mas sabes fazer isso, não sabes? Nós preparamo-nos durante 3 meses, treinamos, fazemos tudo o que está ao nosso alcance. O adversário vai vir com tudo, mas estou preparado para aquilo. Eu escolhi estar lá, eu quero estar lá, por isso, medo, não”, diz.
Peso pesado
Brincalhão e bem-disposto, é fácil esquecer que Yorgan de Castro tem 120 quilos (nesta época natalícia um pouco mais) e 1,85 m de altura, estrutura que o coloca na categoria de peso pesado (96 a 120 quilos).
E a sua rotina, embora lhe permitindo algum relaxamento no que toca à alimentação fora das competições, é rigorosa.
Yorgan treina três vezes por dia: musculação de manhã, kickboxing ao meio-dia e às 18h Wrestling e Jiu-Jitsu.
Mas a alcunha que tem no meio MMA – The Mad Titan – não vem propriamente do seu aspecto físico.
Yorgan é fã dos Avengers (Vingadores), em particular do Thanus, o vilão que veio do planeta Titan, e que também tem como nome de código Titã Louco. O seu treinador, após ver a filme, colocou-lhe o mesmo apodo, de forma elogiosa, pelas suas vitórias por K.O. ‘Quando tocas, os gajos caem’, disse.
Vencer por Knockout, confessa Yorgan, é “diferente”.
“É uma sensação incrível, parece que estás a desligar uma pessoa, que lhe estás a tirar a alma… é assustador”, conta. Além disso, sublinha, “uma vitória sem margem para dúvidas”.
Futuro
Com 35 anos, a vida de lutador de Yorgan de Castro ainda está longe de acabar. A idade da “reforma” varia entre as diferentes categorias, sendo que o peso pesado é aquela onde se costuma lutar até mais tarde.
Normalmente combate-se até aos 40 anos, mas há atletas que continuam a fazê-lo após atingir essa idade.
Depois, muitos lutadores de MMA acabam depois por ir para o Wrestling pois é uma actividade bastante bem paga.
“O Wrestling faz mais dinheiro do que os lutadores do UFC”, têm muito público em todo o mundo. E, “no final da carreira todos os lutadores procuram dinheiro”, analisa.
Da sua parte, Yorgan de Castro não descarta totalmente a ideia de um dia entrar no Wrestling, mas tem as suas reticências…
“É tudo muito ensaiado, são muito bons actores, não sei se tenho capacidade de ser um bom actor, mas quem sabe, no futuro”.
Aliás, Daniel Cornier, ex-lutador de MMA que Yorgan sempre aponta como uma referência, é hoje lutador de Wrestling.
“Admiro-o porque era 93 quilos, baixinho, que chegou ao MMA e revolucionou. Pensa-se que um lutador tem de ser grande, musculoso, mas ele nunca perdeu uma luta no peso pesado, foi bicampeão do mundo da UFC”, descreve.
Cabo Verde
O Wrestling é uma possibilidade futura. Mas, ainda falando de futuro, um plano em que Yorgan de Castro está decidido é em criar uma escola de MMA na cidade da Praia ou em São Vicente.
“Espero motivar. Eu era um dos meninos daqui, e se eu posso [estar nos grandes octógonos do MMA] eles também podem”, diz.
Embora grande parte dos atletas de MMA comecem por uma modalidade específica como boxe, kickboxing, karaté, ou outra e já haja em Cabo Verde algumas escolas de artes marciais, a ideia é ensinar já as três modalidades da sua luta.
“Wrestling, Kickboxing e Jiu-Jitsu. Há ginásios de Artes Marciais Mistas espalhados pelos Estados Unidos todos. A criança de 6 anos entra e já aprende tudo, então é a vantagem”, explica.
Para o país, acredita, a escola traria também ganhos. “Cabo Verde está a desenvolver-se, e o desenvolvimento traz coisas como a criminalidade. Se eu pudesse abrir um ginásio aqui, que permita tirar jovens que estão na rua, sem fazer nada, oferecer-lhe um espaço onde possam treinar, e, mais do que isso, dar-lhes uma visão de futuro e esperança, que muitas vezes é o que falta porque não sabem o que vão fazer daqui a 5 anos”, isso poderia fazer a diferença.
Um jovem a quem seja dada a possibilidade de no futuro ser um atleta, provavelmente “já não cai no mundo da criminalidade”, considera.
E depois há todo o lado do auto-controlo e auto-estima que é trabalhado e evita as situações de violência nas ruas.
O projecto, como referido, não é para o imediato. “Ainda sou um atleta activo, e quando é assim tens de colocar 100% de ti…”
“O meu plano seria lutar até aos 40 anos, ganhar o meu cinto Eagle, defender o cinto e alcançar os meus objectivos pessoais”. Depois abrir o referido ginásio e ser empresário dos atletas do mesmo.
Mas avança desde já um conselho para os jovens: que não desistam dos seus sonhos mesmo que, neste país “bem pequenino” lhes digam que não vão conseguir. “Não desistas, sonha” e luta pelo teu caminho.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1099 de 21 de Dezembro de 2022.