Ainda é cedo para se perceber o que poderá sair das negociações, mas é já certo que o Governo quer incorporar no documento respostas a algumas questões que têm merecido críticas por parte de operadores e ambientalistas. O objectivo é que, no final, todos possam ficar (um pouco) mais satisfeitos.
Do novo entendimento, que deve ser alcançado ainda este ano, para vigorar a partir de 2019, deverão constar alguns reajustes, considerados necessários pela tutela mas também pela classe pesqueira e ambientalistas.
Já no início de Junho, em declarações à Rádio Morabeza, o secretário de Estado adjunto para Economia Marítima, Paulo Veiga, admitia que o acordo com Bruxelas tem de ser melhorado.
“O posicionamento de Cabo Verde é que o acordo deve e tem de ser melhorado. Cabo Verde deve ganhar mais. Quando digo Cabo Verde, digo o sector das pescas, que tem de sentir mais os efeitos deste acordo”, assegurava.
Na mesma linha, o ministro da Economia Marítima, José Gonçalves, disse recentemente que, desta vez, Cabo Verde quer negociar não só a questão das pescas mas também outras vertentes, nomeadamente a segurança marítima e a economia azul.
“Queremos que, de facto, no acordo que venhamos a desenvolver, e cujo epicentro é o acordo das pescas, outras vertentes também sejam contempladas. É nesse sentido que a liderança do nosso embaixador em Bruxelas, que conhece muito bem o meio ambiente onde trabalha, nos orientou a fazer a estratégia para dar seguimento às nossas actividades”, reforçou.
O acordo de parceria ao nível das pescas, para captura de atum, entre a UE e Cabo
Verde faz parte da rede de acordos na África Ocidental e permite que embarcações de Espanha, Portugal e França pesquem nas águas cabo-verdianas. Ao abrigo do protocolo, 71 navios comunitários podem pescar nas águas nacionais, mediante uma compensação financeira paga ao arquipélago.
Os empresários do sector têm criticado os termos da cooperação pesqueira com os países europeus, por entenderem que ficam em causa os interesses das empresas nacionais e a sobrevivência da própria classe.
Garante o secretário de Estado adjunto para a Economia Marítima que as negociações em curso levam em linha de conta as reivindicações dos armadores.
“Os armadores da pesca semi-industrial reclamam o acesso a algumas bancas de pesca onde os navios da União Europeia estão a pescar. Vamos estudar e ver, de acordo com a legislação, como é que isso se encaixa”, declara.
No âmbito do protocolo em vigor, iniciado em 2014, a União Europeia pagou a Cabo Verde uma compensação financeira anual de 550.000 euros (60 mil contos) nos dois primeiros anos, e 500.000 euros (55 mil contos), por ano, em 2017 e 2018.
Aos armadores cabem dois tipos de pagamento: um valor pago antecipadamente, todos os anos, e que pode ir até aos 4.950 euros (545 contos) – para capturas de referência de 90 toneladas – e uma taxa por tonelada, caso seja ultrapassada a tonelagem máxima permitida. Essa taxa por tonelada extra varia entre os 55 (na primeira metade da vigência) e os 65 euros (nos dois anos seguintes). Ou seja, os armadores pagam entre os 6 e os 7 escudos por cada quilo de atum capturado.
Ao olhar para estes números, o presidente da Associação dos Armadores de Pesca de Cabo Verde (APESC), João de Deus, espera que o novo protocolo tenha melhores condições financeiras, e que não seja apenas mais um “acordo possível”.
“Estamos atentos, de modo a que as propostas que a APESC fez sejam consideradas, porque nós não vamos continuar a aceitar que o acordo seja lesivo à armação nacional e ao país”, garante.
“Cabo Verde tem todas as condições para fazer um excelente acordo e criar de facto riqueza dentro da economia marítima”, acredita o dirigente associativo.
Sobre esta questão, e em declarações recentes aos jornalistas, na cidade da Praia, a embaixadora da União Europeia em Cabo Verde, Sofia Moreira de Sousa, pediu cautela nas críticas.
“É bom as pessoas terem acesso às informações, falarem e terem uma opinião, mas também é importante pensar que este acordo com a União Europeia existe e Cabo Verde recebe uma contrapartida. É um acordo negocial”, recordou.
“É um acordo comercial entre duas partes e a ideia é chegarmos a um resultado que seja satisfatório e que traduza ganhos para ambas as partes”, perspectivou.
Fiscalização
A questão da fiscalização do cumprimento dos termos acordo é outra matéria sensível. Cabo Verde tem um problema crónico na hora de fiscalizar, transversal a várias áreas. No caso concreto das pescas, ambientalistas e operadores económicos são unânimes ao reconhecer a importância de o Estado assumir o seu papel.
A associação ambientalista Biosfera tem vindo a alertar para a necessidade de Cabo Verde colocar observadores de bordo nos barcos de pesca da União, de modo a evitar pesca ilegal ou não declarada.
Tommy Melo, presidente da associação ambientalista, não entende o vazio que existe nesta questão, até porque difere da prática sub-regional.
“Eu vim de uma reunião em Dakar em que estavam os operadores representantes de todos os países da África Ocidental. Cabo Verde é o único país da região que não tem fiscal de bordo, não tem observadores de bordo. É o único país”, destaca.
“Cabo Verde sempre disse ‘não temos dinheiro para pagar observadores de bordo’. Ora bem, vim a descobrir que, na maior parte dos acordos de pesca, são os próprios países que fazem o acordo, nesse caso a União Europeia, que pagam os observadores. Obviamente que não directamente, porque isso iria criar um jogo de interesses, porém, eles dão o dinheiro ao país e o país contrata a sua equipa de observadores”, acrescenta.
O acordo com Bruxelas incide sobre o atum, mas quem intervém na área assume que a frota europeia captura outras espécies. João de Deus, da APESC, também aponta o dedo à falta de fiscalização.
“Cabo Verde é que tem falhado ao não colocar observadores a bordo dos navios. Nós estamos a fazer um acordo onde falamos só dos tunídeos, mas depois sabemos da pesca de tubarões. Eu penso que o país deve munir-se, de facto, de observadores e colocá-los nesses navios”, reforça.
No limite, uma pesca sem fiscalização e que não respeite a renovação das espécies coloca em causa a actividade pesqueira, impactando, em primeiro lugar, a pesca artesanal.
Fernando Monteiro, pescador, confirma. Garantir o sustento é hoje mais difícil.
“O problema de pesca que temos em Cabo Verde é porque os tubarões foram limpados dos nossos mares. Porque são os tubarões que trazem qualquer espécie de peixe para terra. Quando o tubarão encurrala uma ‘mancha de atum’, eles vêm para a terra. Se não há tubarão, não teremos peixe em terra”, conta.
“Aqui não há protecção, falta força de vontade”, lamenta.
Também a União Europeia quer que o processo de captura seja mais transparente. A embaixadora da UE, Sofia Moreira de Sousa, prometeu, na última semana, medidas para garantir o controlo das capturas.
“Tendo consciência da limitação da administração nacional, temos agora um sistema, que está a ser implementado, de controlo automático. A quantidade de peixe que entra nas embarcações europeias fica automaticamente registada e Cabo Verde tem acesso a estes registos. É um passo para assegurar a transparência”, defende.
Linhas vermelhas
Mas o que seria um bom acordo de pesca para Cabo Verde? Em que áreas o país deve ser exigente e mesmo intransigente?
Às compensações financeiras e fiscalização, a Associação dos Armadores de Pesca de Cabo Verde alerta para um outro ponto: a importância de se salvaguardar as condições de exportação das capturas efectuadas pelos armadores nacionais para o espaço europeu, em particular ao nível do tubarão.
“Se o país conseguir negociar para que os armadores nacionais tenham quota de exportação de tubarão, qualquer armador pode fazer joint-venture com outros países e outros armadores, trazer navios industriais e ir capturar tubarões, descarregar nos portos nacionais, com certificação de exportação, e exportar para a União Europeia. Nenhum armador nacional conseguiu ter joint-venture com outros armadores de outros países com mais condições financeiras, porque não temos quota de exportação”, ambiciona João de Deus.
Da Biosfera, o biólogo Tommy Melo aponta três pontos que, no seu entender, podem garantir ao país uma cooperação positiva.
“De forma muito concreta, ter um limite de captura que não seja ultrapassável. Ter medidas de mitigação contra a captura de tartarugas e ter observadores a bordo. Para mim, se atingíssemos esses três pontos, já conseguiríamos ter um documento mais forte para Cabo Verde, que consagrasse a conservação dos nossos oceanos”, estabelece.
Em Bruxelas, decorrem negociações técnicas, lideradas pelo embaixador de Cabo Verde na Bélgica, José Filomeno, com suporte de uma equipa de peritos. Pouco se, por enquanto, sabe sobre o andamento das mesmas.
*com Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.