Nos anos 90, o engenheiro agrónomo Sérgio Roque conheceu uma pessoa que mudou todos os seus planos de vida. Depois de ter recebido a visita do embaixador de Cabo Verde no Brasil e de ouvi-lo falar das dificuldades de produção que o arquipélago enfrentava, principalmente de hortaliças, o filho de cabo-verdianos teve a ideia de vir estabelecer-se nas ilhas atlânticas. Já tinha experiência na hidroponia no Brasil, era consultor há dois anos, e em 1998 resolveu tirar um mês de férias para conhecer o país de onde os pais tinham emigrado. De regresso ao Brasil, começou a montar o projecto.
“Naquele tempo,” conta ao Expresso das Ilhas, “o PROMEX era o órgão responsável para avaliar os projectos. O meu foi um dos primeiros agrícolas do país e havia ainda pouco conhecimento”. Foram nove meses de análise, com perguntas e respostas trocadas por fax, até que um dia o projecto recebeu luz verde e Sérgio Roque teve o estatuto de investidor externo. Em 2000 zarpou com a esposa e todo o material, num contentor de 6 toneladas, porque em Cabo Verde este não existia.
Em São Domingos, numa área cedida pelo INIDA, começa o que seriam os primeiros passos da hidroponia em Cabo Verde – com a empresa Hidrocultura Roque Monteiro. Depois de seis meses de produção vê que o negócio e o produto eram viáveis, a qualidade estava também assegurada pelas sementes que trouxera do Brasil. Sofre também o primeiro revés, um ciclone deitou abaixo toda a estrutura de produção. Não desanimou. Fez um empréstimo bancário e reergueu as unidades.
A hidroponia foi descoberta no século XVIII, mas foi o americano William Gericke quem, em 1929, usou, pela primeira, vez o termo “hidroponia”, que tem origem na palavra grega “hidro”, ou água, e “ponos”, trabalho. As plantas cultivadas em hidroponia não precisam de solo, apenas cascalho e água enriquecida com nutrientes. A grande vantagem é que as plantas têm acesso apenas à água que necessitam e a que não é usada pode ser recolhida e reutilizada, o que faz da tecnologia o método ideal para zonas secas, como é o caso Cabo Verde.
Uma questão de clima
Situadas na zona do Sahel, as ilhas têm um clima semi-árido. A precipitação é muito baixa, há uma estação muito longa e predominantemente seca e uma estação chuvosa curta (chuvas irregulares entre Agosto e Outubro, com aguaceiros breves, mas fortes). A temperatura praticamente não varia. No entanto, o clima de Cabo Verde é mais ameno que o do continente, porque o mar circundante modera as temperaturas nas ilhas e as frias correntes atlânticas produzem uma atmosfera árida à volta do arquipélago.
Desde a década de 1960, vários programas de ajuda ao desenvolvimento têm como alvo a indústria agrícola cabo-verdiana, mas o progresso foi sendo frustrado pela seca e pela contínua escassez de água, pelo excesso de pastoreio e pelos métodos de cultivo antiquados e ineficazes. Quase todos os esforços de desenvolvimento agrícola concentraram-se em questões de irrigação e humidade, como o aprimoramento de técnicas para multiplicação de sementes, o cultivo de batata e batata doce em áreas húmidas e a gestão da água nos esquemas de irrigação.
O cultivo para consumo doméstico é a actividade agrícola mais difundida em Cabo Verde. As culturas incluem milho, mandioca, batata doce e banana. Apenas 11,2% da área terrestre é adequada para a produção agrícola e apenas cinco ilhas (Santiago, São Vicente, São Nicolau, Fogo e Santo Antão) têm condições adequadas para a criação de culturas comerciais. As bananas são a exportação agrícola mais importante. Actualmente, cada vez mais vinho e café são cultivados para exportação. A cana-de-açúcar é usada para produzir grogue, que também é exportado. Nos mercados, as frutas frescas disponíveis incluem bananas, mangas, mamão, maracujá (e maçãs importadas), uvas, kiwi e frutas cítricas. Batatas, cenouras, abóbora, pepino, tomate, cebola, pimentão verde, feijão verde, beringela e alface estão quase sempre disponíveis. O feijão e a mandioca estão sempre no mercado. Alguns vegetais congelados também podem ser encontrados, incluindo ervilhas, milho, feijão verde e, às vezes, espinafre e brócolos. A disponibilidade de ervas frescas e a variedade de vegetais em geral é menos boa. A maioria das lojas costuma comprar através dos mesmos importadores e assim, os itens tendem a ser o que chegou no último navio. Alguns produtos, mesmo básicos, podem estar ocasionalmente indisponíveis.
É neste contexto que Sérgio Roque inicia o seu negócio. Em São Domingos, numa área de 500 metros quadrados, começa a produzir alface, mas como além de engenheiro é também cientista pesquisa e ensaia outros produtos: cebola, cebolinha, salsa, espinafres, alho porro, tomate, agrião, rúcula, chicória. “Isso foi importante, porque em determinado período outros começaram também a dar atenção à hidroponia”.
No início, os hotéis do Sal absorviam toda a produção, que era enviada via aérea. Depois de praticamente três anos foram surgindo mais pedidos na Praia. Decide deixar o Sal, porque o custo era mais alto, e fica apenas a abastecer a Praia. Nesse período recebe também um convite do Instituto de Emprego para dar uma formação em hidroponia, a primeira no país, e organiza um fórum internacional, também o primeiro em Cabo Verde. “Consegui trazer oradores de fora e foi aqui que se deu o passo maior, porque as pessoas começaram a conhecer e a acreditar na técnica”, diz.
Actualmente, tem capacidade de produzir 350 bolsas de alface por semana, 200 bolsas de agrião por semana, e 200 bolsas de rúcula semanais. Mas a falta de certificação é ainda um dos constrangimentos. “Isso depende do governo, é o governo que tem de tomar essa medida. Talvez com o que aconteceu agora em Dezembro, com a contaminação, eles pensem seriamente nessa questão. Uma coisa é ter uma produção hidropónica que tem todos os procedimentos técnicos, que segue todos os parâmetros, pensando na sanidade dessa produção para entregar no mercado, outra é pessoas que estão a fazer essa produção sem nenhum controlo sanitário, passando por cima da técnica e levando o produto para o mercado com a maior urgência. Isso é o grande problema que está a acontecer”.
A contaminação detectada
Um estudo realizado em Novembro de 2019, para avaliação das alfaces comercializadas no município da Praia, pelo Laboratório de Controlo de Qualidade de Água e Alimentos do INSP, revela que 100% das amostras analisadas apresentavam contaminações por parasitas intestinais.
As estruturas parasitárias encontradas nas alfaces foram quistos, ovos e larvas. Foram identificados 15 espécies de parasitas, algumas com importância em saúde Pública, nomeadamente Ascaris lumbricoides (conhecida por lombriga), Entamoeba histolytica, os Ancilostomídeo (Ancylostoma duodenale, e Necator americanus) e Strongyloides stercoralis.
Segundo o mesmo estudo, as amostras do cultivo hidropónico apresentaram menor diversidade parasitária em relação às amostras de cultivo tradicional.
“Foram detectadas coisas grosseiras que na verdade aparecem por falta de higienização do processo”, explica Sérgio Roque. “Há seis meses que não estou a produzir alfaces, mas estou preocupado com a situação porque afecta todos os produtores. Uma acusação destas devia ter alguns cuidados, porque mete todos no mesmo saco. E não é assim que funciona. Quando cheguei, uma das preocupações foi trazer um processo hidropónico isento de doenças. Se todas as regras forem seguidas não há problema algum, tanto é que produzi alface por 20 anos e nunca tive problemas. Mas hoje há quem esteja a produzir de forma agressiva e em grandes quantidades e aí as coisas acontecem”.
“Eu sigo os parâmetros brasileiros, em que a colheita é feita com a raiz, para aumentar a durabilidade. Aqui o pessoal costuma cortar a raiz. A cada 30 dias eu faço a higienização do sistema para poder fazer nova produção. Aqui não fazem isso, usam canais, metem plantas, tiram plantas e não fazem higienização. É claro que com o tempo a probabilidade de acontecer patogénicos é alta. O ministério devia avaliar e credenciar quem realmente faz e quem não faz. É assim em todo o lado, mas aqui… Nem código de barras temos ainda nos produtos… Assim é difícil”.
“Procuro sempre zelar por mim e pelos outros, agora quando os outros começam a fazer mal, cabe ao ministério actuar e fazer o enquadramento de quem está a fazer as coisas mal feitas. A alface por ser um produto de rápida colheita, que é comida crua, cria esses problemas”, sublinha o engenheiro agrónomo.
A Hidrocultura Roque Monteiro foi a primeira empresa agrícola cabo-verdiana a usar a hidroponia e Cabo Verde foi o primeiro país africano a implementar a técnica. No mesmo ano, a África do Sul também desenvolveu a tecnologia e hoje esta encontra-se espalhada por praticamente todo o continente.
“A técnica hidropónica no Brasil começou em 1950 e vem sido desenvolvida desde então nas universidades”, diz Sérgio Roque. “Demorou a chegar a Cabo Verde porque, por um lado, o custo é elevado, por outro, há a questão do conhecimento técnico. Às vezes as pessoas têm o dinheiro, mas não têm o conhecimento técnico, outras vezes têm o conhecimento técnico, mas não têm o dinheiro, esse é o problema. Agora que Cabo Verde já tem várias unidades é tempo de pensar nesta técnica de forma mais inteligente, criar certificação, para que não aconteçam mais problemas”.
O engenheiro brasileiro dá formações desde 2006 e também cria pequenas unidades, para pessoas carenciadas e não só. Na cadeia da Ribeirinha, por exemplo, ainda hoje funciona uma unidade de hidroponia que montou há mais de dez anos. Já formou mais de 100 pessoas, mas actualmente há apenas meia dúzia a fazerem esse trabalho. “A minha ideia é trabalhar em prol da alimentação correcta, não estou preocupado com o dinheiro”, diz Sérgio Roque.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020.