Na Rua de Praia, Domingas dos Santos, do Bar Boaventura está “mais triste que nunca”. Pela primeira vez, experimentou um ano sem a animação do Carnaval e, além da falta de clientes, sentiu falta da agitação própria da época.
“Normalmente, a partir de Janeiro, temos a tradição dos mandingas. Depois, todos vão para um sítio beber uma água, um sumo ou comer uma canja. Este ano, nada aconteceu. Não temos nada”, lamenta.
O estabelecimento que gere chegou a ter 15 trabalhadores. A pandemia obrigou à diminuição do pessoal. Restam oito funcionários e não são necessários mais, porque “o negócio está fraco”.
“Aguardamos com expectativa que as coisas melhorem. Normalmente, nesta altura contamos, com turistas e emigrantes. Neste momento estamos sem movimento, tudo parado”, acrescenta.
O sentimento é partilhado. Na residencial Sodade, depois de uma passagem de ano a zeros, o Carnaval repetiu o cenário. A proprietária, Verónica Tavares, está de portas abertas e com a casa vazia.
“Tenho trinta quartos e neste Carnaval não tenho um único cliente. Não preciso dizer mais nada. A situação está muito difícil. Num ano normal, estamos sempre cheios, temos os grupos enviados pelas agências e outros vindos do exterior, A Sodade é uma casa antiga, mas com muita referência”, recorda.
Sem despedir, Verónica colocou o pessoal em layoff e mantém apenas o mínimo indispensável, como serviços de limpeza.
“Temos que nos sacrificar de alguma forma, para vencer esta pandemia, mas não é fácil. Temos contas para pagar, luz, seguro, salários. Estamos a passar por um momento difícil”, desabafa.
No Hotel Dom Paco também não há turistas. O negócio continua fraco, com uma redução na procura de 70 a 80%. O Carnaval não fugiu à regra. Sem festa, não houve reservas. A estratégia, ao longo do último ano, tem passado por propor outro tipo de oferta.
“No restaurante, estamos a renovar os menus. No hotel, a fazer promoções especiais para pessoas que querem realizar alguma actividade e precisam de um espaço com alguma circulação de ar. Estamos a negociar novos preços com empresas e instituições do Estado que possam estar interessadas em fazer viagens de trabalho e é disso que estamos, basicamente, a sobreviver neste momento”, comenta Juan Silva, director da unidade hoteleira.
Também não houve despedimentos. A aposta continua a passar pelo layoff, com redução da carga horária.
Cara a cara com a Praça Nova, Eliane Almeida, do MindelHotel, fala de uma “situação crítica”. Ao contrário de anos anteriores, neste momento, a ocupação é “quase nada”.
“Sem Carnaval ficou complicado. Nos anos anteriores, tínhamos, para além dos turistas, outros grupos que ficavam aqui hospedados para assistir ao Carnaval. Este ano, infelizmente, não”, afirma.
Apoios
O cenário desolador repete-se por todas as unidades de alojamento, restaurantes e comércio são-vicentinos. O Carnaval foi riscado do calendário, pandemia oblige, à espera de melhores dias.
Marco Bento, presidente da Liga Independente dos Grupos Oficiais do Carnaval de São Vicente (LIGOC-SV), lembra que, numa ilha onde o Rei Momo é tradição, o primeiro impacto é emocional, sem esquecer a economia.
“Para toda a gente envolvida no Carnaval, desde o serralheiro ao carnavalesco, que começa a pensar o Carnaval meses antes, para eles, teve um impacto enorme. Também para a ilha, porque se a economia estiver a girar, as pessoas têm mais qualidade de vida, especialmente quando a economia está indexada às manifestações culturais a que já estamos acostumados”, regista.
A LIGOC-SV tem abertos canais de diálogo com a Câmara Municipal de São Vicente e o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, à procura de formas de minimizar o impacto negativo da não realização das celebrações carnavalescas.
“O Carnaval em São Vicente já é uma indústria e uma indústria depende de operários. Se nós pararmos, isso quer dizer que tudo pára. Essa ausência de receita é que nos preocupa”, sublinha Marco Bento.
“Acho que esse diálogo que estamos a ter está a correr bem e daqui a alguns dias poderá ser feito algum anúncio sobre algumas medidas de mitigação”, antecipa.
A indústria do Carnaval
Apesar de faltarem dados concretos, a percepção é que, até ser interrompido pela crise sanitária, o Carnaval de São Vicente estava em sentido ascendente, quer na dimensão e organização dos desfiles oficiais, quer na capacidade de mobilizar público nacional e internacional, com o que isso significa para a economia local e nacional.
O presidente da LIGOC-SV reconhece a necessidade de quantificar a dimensão da indústria, em toda a sua escala. “É um estudo que temos que fazer”, concorda Marco Bento.
O que existe não vai além de números redondos e contas feitas por alto. O presidente da Liga calcula que, entre patrocínios e apoios públicos, cada desfile possa representar um investimento entre os oito e os dez mil contos, o que significaria, só com os desfiles, a mobilização de perto de 50 mil contos. Falta tudo o resto, porque o evento é multissectorial.
O economista João Evangelista Monteiro valida a ideia de que é necessário medir o impacto do Carnaval, principalmente porque o evento envolve dinheiros públicos, mas também para avaliar as perdas, em anos como este.
“É necessário que tenhas alguma métrica para saber se aquele recurso foi bem aplicado ou não. Na economia, se escolhes aplicar o dinheiro aqui, estás a tirá-lo de algum lugar, principalmente num país como Cabo Verde, onde os recursos são muito escassos”, declara.
“É importante dizer, por exemplo: a câmara municipal está a aplicar tanto no Carnaval e está a gerar tantos empregos, impostos, movimentação económica. Isso é uma questão trabalhada no Brasil, apesar de também termos uma certa deficiência”, complementa o professor da Universidade Federal Fluminense e natural de Santo Antão.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas, realizado na capital carioca, que tem o maior Carnaval do mundo, relevou que a não realização dos festejos em 2021 implicará, por si só, uma perda de aproximadamente 92,8 mil milhões de escudos cabo-verdianos (5,5 mil milhões de reais), o equivalente a 1,4% do Produto Interno Bruto daquela cidade brasileira.
*com Fretson Rocha
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021.