“Não existe turismo a mais, há resto de economia a menos”

PorJorge Montezinho,20 mar 2021 7:57

Antigo presidente da Confederação do Turismo de Portugal, turismólogo, consultor, analista, gestor, professor do ensino superior e, actualmente, considerado como o comentador turístico português de referência, Atílio Forte falou com o Expresso das Ilhas sobre a evolução do sector, a retoma, as lições da crise, as novas motivações dos turistas e a competição feroz entre os destinos.

Começamos por este ano – 2021 – que factores, tendências e acontecimentos irão definir a evolução do turismo mundial?

Há um ponto fundamental que vai marcar o ano que é tudo o que tem a ver com as vacinas. E em áreas distintas: primeiro, a eficácia das mesmas, ou seja, há um ano, quando a pandemia eclodiu, se nos dissessem que dentro de um ano teríamos vacinas prontas para cumprir o plano de vacinação, ninguém acreditaria. Depois, ao conceder-nos imunidade, quanto tempo será essa imunidade, que ainda não sabemos. Para além disto, temos os planos de vacinação. Como já se viu, o importante é que os planos de vacinação resultem, mas não podem resultar unilateralmente, não podemos ter um país que tenha toda a gente vacinada, mas que o resto do mundo não esteja. Depois, entrando mais concretamente no domínio do turismo, vão acentuar-se algumas tendências, que já se vinham a verificar no passado, e vamos ter desafios novos decorrentes da pandemia. Do que se vinha a verificar no passado, julgo que há dois aspectos importantes: o primeiro, que tem a ver com o acentuar da tendência, que parte dos consumidores, em procurarem produtos com sustentabilidade, não apenas sustentabilidade turística, mas sobretudo toda a área que tem a ver com sustentabilidade ambiental, ecológica, climática. Portanto, turismo de natureza será uma tendência. E temos também a questão do teletrabalho, ou seja, descobrimos que não precisamos de um sítio físico para trabalhar e que a tecnologia nos permite levar o trabalho para onde quisermos. Um último aspecto, este ano vamos ter um turismo muito regional, atendendo a todas as dificuldades de mobilidade e ao tempo que levará a vacinação é muito natural que os europeus fiquem pelos mercados de proximidade, que os asiáticos fiquem pelos mercados de proximidade, na América a mesma coisa, assim como nos outros continentes. Salvo raras excepções, não vamos ter um turismo tão global como se poderia esperar. Se isto correr tudo bem, e esperemos que sim, podemos ter um Verão melhor do que o de 2020 e, eventualmente até, se a vacinação correr como planeado, um último trimestre com muita gente a viajar, porque segundo todos os estudos internacionais, toda a gente está desejosa de se mexer.

Escreveu que o triângulo virtuoso para o relançamento do turismo passa pelos certificados sanitários, planos de vacinação e testagem em massa. Tudo isto não poderá diminuir a procura? Por outras palavras, se pusermos no prato de uma balança a vontade de viajar e no outro todo este processo, a vontade de viajar pesará mais que o aborrecimento de ter de passar por todas estas etapas?

Julgo que a vontade de viajar é maior. O ser humano não é persistente nas doenças e temos de perceber como é que chegámos aqui do ponto de vista turístico. Numa sinopse temporal muito rápida, vemos que o turismo é uma atividade económica jovem, a expansão dá-se no pós II Guerra Mundial e em meio século, até finais do século XX, passou a ser líder da actividade económica mundial. Em cinquenta anos! Uma coisa inaudita. Fechámos o ano de 2019 com mil e quinhentos milhões de turistas, uma coisa louca. Em 2020 perdemos mais de 2/3 destes turistas, voltámos aos números de 1990. Portanto, há aqui um consumo muito grande que está reprimido. O que pode provocar alguma moderação, como disse, são as questões sanitárias: se me acontecer alguma coisa, em que hospital posso ser atendido? Como posso ser repatriado? Eram questões em que não pensávamos antes, mas que agora entra nas contas. Eu julgo que o turismo rapidamente recuperará, assim consigam os consumidores percecionar que existe segurança nos destinos. E aí eles vão ser exigentes. E são eles que hoje em dia mandam. Que nenhum destino e nenhuma empresa tenha ilusões que hoje em dia controla a procura. O paradigma mudou e à distância de um click temos todas as informações enquanto consumidores. É muito importante que o turismo perceba isto, até porque falamos de uma actividade profundamente humana, feita por pessoas para pessoas.

Diz também que o turismo não consegue criar stocks, ou seja, todas as estadas que foram anuladas estão perdidas para sempre, já não se recuperam, nem com as estadas futuras. Quando o turismo regressar, vamos assistir a uma espécie de ano zero?

Não direi um ano zero. Quando digo isto, é no conceito de criação de riqueza. Costumo dizer aos meus alunos que o turismo tem quatro características que as distingue de todas as áreas de actividade económica: a primeira é a sua matéria-prima, que são as pessoas. Creio que estamos todos de acordo que não há matéria-prima mais rica, mais sensível, mais complexa e não é à toa que se diz que cada pessoa é um mundo. A segunda característica é que não pode criar stocks, ou seja, uma mesa de um restaurante, um quarto de hotel, um lugar num avião, se não é ocupado naquela refeição, naquela noite ou naquele voo, nunca mais vai poder ser usado e fica perdido para sempre, porque quando se vender, na noite seguinte, aquele quarto, aquela mesa, ou aquele lugar, já são outros e não os mesmos. Terceira característica do turismo, a avaliação do produto nunca se faz no acto de compra. Se vou comprar um computador, ou uma peça de roupa, é algo tangível, avaliável, palpável, no turismo só no momento da sua fruição, ou mesmo à posteriori, é que pensamos se valeu a pena, se gostei, se o que eu paguei compensou o que tive em troca. Quarta característica, a oferta turística não é deslocalizável, os activos turísticos, desde um hotel, a uma praia, a um museu, a um monumento, ou uma paisagem, só podem ser apreciados num local. Podem-se construir réplicas, mas não se levam os cheiros, a luz, as gentes, todo o ambiente que os rodeia.

Que lição pode o sector tirar desta crise?

Há uma que é transversal: não podemos dar nada por adquirido. E creio que o turismo, a nível mundial, andava demasiado ufano, de peito cheio, porque nunca ninguém pensou que, de um momento para o outro, o turismo entrava em modo de pausa. A outra lição, mas neste caso que o turismo tem dado às demais áreas da actividade económica, é a capacidade de, permanentemente, se reinventar. E que os valores que são defendidos pelo turismo: a comunhão entre os povos e a conjugação de esforços, quando aplicados universalmente – veja-se o que aconteceu na questão das vacinas – consegue-se obter resultados.

Turismo implica deslocação, mas à crise no sector junta-se a crise na aviação. Há destinos a reabrir e há menos aviões, acha que poderemos assistir a uma espécie de ‘vale tudo’, uma ‘guerra suja’ entre destinos para conseguirem captar as aeronaves disponíveis?

Essa guerra já existe. Já aconteceu no ano passado, só não viu quem não quis. Na Europa tivemos países que no início do Verão, acabada a primeira vaga da pandemia, simplesmente deixaram de testar para apresentarem números atractivos para poderem salvar o Verão turístico. Num ano em que os fluxos foram escassos, como referi, a competição foi feroz por aqueles poucos que ainda tiveram vontade, coragem e capacidade de viajar. Portanto, essa guerra está em curso. Agora, a pandemia também serviu para uma coisa, demonstrou que a aviação é parte integrante e peça fundamental da actividade turística. Porque hoje as pessoas deslocam-se de avião, ponto. E, como vimos, parou o turismo, a aviação ficou em terra. Voltando à guerra entre destinos, é bom estarmos preparados, porque o jogo é sujo, não é limpo, não vamos ter ilusões. Estamos a falar do maior negócio do mundo. Quando comecei a trabalhar, na década de 80, o Algarve concorria com os países mediterrânicos, não competia com Cabo Verde, por exemplo, mas hoje compete, assim como compete com as praias do extremo oriente, a competição, actualmente, é global.

Falámos há pouco do turismo regional. Acha que Cabo Verde, a cerca de 4 horas da Europa, poderá usufruir desse circuito?

Poder pode, porque ainda está dentro da franja de proximidade, mas repare, está a 4 horas de Portugal, do centro da Europa já está a seis horas. Não quero ser alarmista porque daquilo que conheço, Cabo Verde tem um enorme potencial, desde que consiga garantir as condições sanitárias e de segurança. Quando se fala em turismo, fala-se muito, agora, de experiência, as pessoas querem experiências. Devo dizer que nunca foi termo que me tivesse entrado, porque acho que o turismo não são experiências são emoções, o turismo é sensorial, acima de tudo. Nós vemos, cheiramos, tocamos, sentimos, nós temos emoções quando vamos a um sítio. Obviamente, temos uma experiência, mas quando queremos misturar-nos com as populações locais, queremos ver como vivem, como festejam, isso tudo são experiências sensoriais. Acho que o próximo passo que vamos dar no turismo será vivê-lo não como uma experiência, mas como uma emoção. Porque o turismo é humano.

Teremos de repensar a promoção dos destinos para abarcar essa emoção?

Há uma coisa que podemos estar certos, hoje o consumidor está avisado, não compra gato por lebre, com isto quero dizer que não se vai expor a qualquer risco se não tem a certeza. Se não tivermos as infra-estruturas necessárias, se não tivermos todos os activos prontos para corresponder às expectativas de quem está a pagar, e quem paga manda, o turista não regressa. Eu não gostava que acontecesse com Cabo Verde, e infelizmente acontece porque também é muito dependente do turismo, o que aconteceu com Portugal. O turismo tem sido uma actividade muito dinâmica, muito mais rápido que a restante economia e quando o turismo falhou a nossa economia colapsou. Porquê? Porque nós não temos turismo a mais, temos é o resto da economia a menos. Tomara eu ter mais indústria, ter mais agricultura, ter mais tudo o resto. Apesar de ser do turismo, não sou faccioso, há espaço para todos e é importante diversificar, mas para isso é preciso ter condições, que dependem dos governos.

Já chamou de ‘extorsão’ do turismo e do turista à quantidade de ‘taxas e taxinhas sem fim à vista’ que existem no sector. Com o regresso do turismo, não seria bom repensar esses custos para tornar os destinos mais competitivos?

Essa questão das taxas e taxinhas surge porque, de repente, descobre-se que para as ineficiências e para as incapacidades de gestão, o turismo e os turistas podiam ser mais um ponto de dinheiro fácil e são verbas fáceis para depois se utilizar onde bem se quer no negócio da política. Em Junho entra em vigor a nova taxa de carbono sobre as deslocações aéreas, é um euro, sim, mas um euro aqui um euro ali, para quem cá vem uma semana, no final, isto já dá uma data de euros. Isto é uma coisa que ninguém entende, tem influência no preço final e o preço é hoje um factor determinante – e com isto não estou em falar no caro ou no barato, mas sim do que pagamos pelo que temos em troca. Quero acreditar, apesar de não ter muitas esperanças, que o bom senso acabará por imperar.

É defensor da criação de um mercado de génese lusófona e raiz atlântica. O que poderiam ganhar os países com esse mercado?

Nós complementamo-nos todos. O nosso triângulo virtuoso é Portugal – Brasil – África. Mas para isso é preciso uma estratégia global. Pegar, por exemplo, na CPLP e dar-lhe um cariz mais económico, que não tem e devia ter. Veja o caso de sol e mar, com a oferta que temos em Portugal, em África, no Brasil, conseguimos ter o consumidor neste circuito uma vida inteira, dando-lhe sempre coisas diferentes, mas estando sempre aqui. Assim, conseguiríamos ser um player, à escala global, de média dimensão. Não seríamos de grande dimensão, mas cada um por si, somos muito pequenos.

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1007 de 17 de Março de 2021.

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Autoria:Jorge Montezinho,20 mar 2021 7:57

Editado porSara Almeida  em  20 mar 2021 18:55

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