“Dinheiro não traz felicidade”, mas cabo-verdianos querem autonomia financeira “para viver e não apenas sobreviver”

PorSheilla Ribeiro,30 abr 2023 10:43

Assinala-se amanhã, 01 de Maio, o Dia do Trabalhador que, além de homenagear a classe, traz à tona questões de extrema importância. Este ano, há quem encare esta data como qualquer outro dia de crise devido ao elevado custo de vida, sobretudo no que se refere aos alimentos.

Não é novidade que os preços aumentaram em todo o mundo e, no país, a maior queixa tem a ver com o custo dos alimentos que, segundo os entrevistados do Expresso das Ilhas, “aumentam todos os dias”.

Esta é a razão pela qual os trabalhadores de diferentes classes profissionais vão sair à rua para uma manifestação no dia 01 de Maio, em diferentes pontos do país. Uma decisão de protesto contra o aumento do custo de vida que foi tomada neste mês de Abril, em São Vicente, durante uma assembleia-geral que reuniu todos os dirigentes e delegados sindicais na ilha.

Para Álvaro Gonçalves, 34 anos, Técnico de Turismo, Comércio e Empreendedo­rismo na Câmara Municipal de São Domingos, este ano, o 1.º de Maio, sendo o Dia do Trabalhador data para homenagear a classe, deveria ter mais impacto.

“Quando digo mais impacto quero dizer que seria importante que a classe trabalhadora tivesse maior autonomia financeira, fosse mais bem enquadrado no sistema ou ainda menos explorada em alguns casos”, declara.

Este trabalhador mostra-se bastante preocupado com o aumento do custo de vida e vê o futuro cheio de incertezas, levando em conta que o poder de compra é cada vez menor devido aos preços elevados.

“Obrigatoriamente, temos de comprar menos ou simplesmente não comprar. No meu caso, deixei de comprar tudo o que não considero indispensável no dia-a-dia. O único lado positivo desta situação é que nos obriga a ser melhores gestores dos nossos recursos financeiros e a classificar tudo por ordem de prioridade”, considera.

Álvaro Gonçalves acredita ser importante o controlo dos preços dos alimentos, de acordo com a situação económica para que a situação não piore.

Deixar o país é uma possibilidade

Élder Paiva, 31 anos, encara o dia 01 de Maio como um outro dia normal de crise porque, segundo diz, nos últimos três anos tem trabalhado apenas para sobreviver.

“Ultimamente, com o preço exagerado dos produtos temos de comprar literalmente o básico. No meu caso, alguns alimentos tiveram de ser suprimidos. Para comprar o básico pago o mesmo que antes pagava por algo que considerava ser luxo”, conta.

Comer fora é sem dúvidas um luxo para este trabalhador que julga que medidas mais profundas devem ser tomadas pelos governantes de forma a devolver o poder de compra ou pelo menos travar a subida dos preços para que a população possa viver com o mínimo de satisfação possível.

“Também é preciso ter atenção com o aumento de pessoas que estão na rua a pedir esmolas devido ao fraco poder de compra. Eu mesmo tive de adiar muitos planos, adiar os projectos pessoais porque realmente o dinheiro não é suficiente e fazer alguma poupança é com muito sacrifício”, descreve.

Paiva afirma que não descarta a possibilidade de emigrar para ter melhores condições de vida e o pensamento é ainda “mais forte” na hora de receber o salário.

“O dia 01 de Maio este ano é para celebrar aqueles que lutam para poderem sobreviver e espero que no próximo ano possamos celebrar aqueles que trabalham para viver”, sublinha.

Da mesma forma, Jalise Bareto, 31 anos, Técnica de Serviço de Formação Profissional, refere que não há o que comemorar no dia 1 de Maio, por considerar a situação actual “extremamente complicada”, também devido ao aumento dos preços dos bens e serviços.

“Este aumento obriga todos os trabalhadores a fazerem reajustes no orçamento mensal, o que dificulta a qualidade de vida dos trabalhadores, principalmente dos que têm um salário mínimo e o dinheiro mal chega para as compras dos alimentos básicos”, argumenta.

Lazer e gastos com beleza não estão nos planos porque requerem custos que seriam melhor empregues na comida.

“Por isso mesmo penso emigrar porque a tendência é o agravamento desta situação e também porque acredito que lá fora, mesmo com aumento dos preços, os trabalhadores têm melhor qualidade de vida”, diz.

Taxa de inflação nos preços de alimentos e bebidas não alcoólicas entre 15 e 18%

A Associação Para Defesa do Consumidor (ADECO) garante que faz o acompanhamento dos preços através do Índice de Consumo Essencial (ICE), onde tem definido um cabaz de alimentos sobre o qual acompanha a evolução dos preços.

Esse índice indica, segundo o Secretário da Direcção da ADECO, Nelson Faria, que o custo com os alimentos essenciais, no geral tem tido aumentos consideráveis na realidade cabo-verdiana, que importa grande parte desses produtos.

“Se a taxa de inflação tem sido verificada em cerca de 8% no geral, relativamente aos produtos alimentares e bebidas não alcoólicas a inflação tem chegado ao dobro dessa taxa, entre 15 e 18%. Nisto, destacaríamos o aumento dos produtos oleaginosos, dos cereais, das leguminosas, da carne e da farinha”, aponta.

De acordo com o ICE da ADECO, o valor de uma cesta básica calculado sobre as necessidades básicas de alimentação de um indivíduo saudável, varia de ilha para ilha mediante várias condicionantes.

Como exemplo, Nelson Faria realça que, em São Vicente, um único indivíduo necessita de cerca de 13 mil escudos para se alimentar, enquanto no Sal esse valor ronda os 17 mil escudos.

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“Daí, diríamos que, em média, uma cesta básica para consumo de um indivíduo rondaria os 15 mil escudos. Para as famílias esse valor poderia ser calculado em função do número de integrantes, com ressalva da economia de escala que pode gerar, não sendo o valor do cabaz linearmente proporcional ao número de elementos na família, entretanto, nunca seria um valor de menos de 20 mil escudos por agregado familiar”, precisa.

Regulação dos preços

Conforme o Secretário da Direcção da ADECO, a regulação de preços de alguns bens e serviços está sob responsabilidade de algumas entidades reguladoras, nomeadamente a Agência de Regulação Multissectorial da Economia (ARME) ou a Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS).

Entretanto, explana que essas entidades não têm todo o poder de regulação sobre todos os produtos e serviços.

“Sendo o nosso mercado essencialmente de livre concorrência, há liberdade de definição dos preços por parte dos comerciantes esperando que esses preços tenham por base uma margem de contribuição justa e não o oportunismo de especulação”, prossegue.

Havendo discrepâncias na concorrência e preços especulativos, ou outras práticas que atentem à livre concorrência, Faria acrescenta que deve a Inspecção-Geral das Actividades Económicas (IGAE), enquanto entidade fiscalizadora, efectuar actuações dentro do seu âmbito.

A ADECO defende que o Estado deve proteger os consumidores através das suas instituições, desde as reguladoras, na definição de preços com critérios de racionalidade que não prejudiquem os consumidores, até às inspectivas, por exemplo, a IGAE.

Enquanto associação de consumidor não estatal, Nelson Faria garante que a ADECO tem feito o seu papel na defesa dos seus associados e dos consumidores em geral através de várias acções, entre as quais sensibilizações.

“Deve o Estado cumprir e fazer cumprir a lei do consumidor, lei essa que consideramos carecer de actualização”, advoga.

Consumidores de mãos atadas

Ao Expresso das Ilhas, o presidente da IGAE, Paulo Monteiro esclarece que ninguém controla os preços dos alimentos. O que quer dizer que a instituição não tem como controlar porque o preço é livre e cada retalhista aplica o preço que quiser.

“Os preços sobem no exterior, obviamente, têm de subir em Cabo Verde. O grande problema que nós temos é nos retalhistas. O aumento dos preços é uma situação incontrolável aqui em Cabo Verde porque a maioria dos comerciantes são retalhistas. O importador estabelece um valor porque sabe que o preço já subiu e que está a subir cada dia mais”, reconhece.

Segundo Monteiro, a IGAE pode chegar à conclusão de que o preço determinado num estabelecimento é uma infracção e o operador pode interpor um recurso nos Tribunais, alegando que o seu custo disparou porque comprou num importador.

“O juiz que vai julgar esse processo vai nos perguntar quais os cálculos que foram feitos para saber se se trata ou não de especulação. De facto, os preços aumentam cada dia mais, é uma situação complicada. De todo o modo estamos no terreno, ouvimos os consumidores, tentamos ver se controlamos a especulação”, assevera. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,30 abr 2023 10:43

Editado porSara Almeida  em  1 mai 2023 10:10

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