Emanuel Barbosa, presidente da Autoridade da Concorrência: “Os consumidores devem pagar pelo que consomem e não pelas ineficiências das empresas”

PorJorge Montezinho,20 ago 2023 6:42

A Autoridade da Concorrência, a AdC, foi instituída pelo Decreto-Lei n.º 21/2022, de 10 de Junho, que também aprovou os estatutos. É uma pessoa colectiva de direito público, com natureza de entidade administrativa independente, gozando de independência orgânica, funcional e técnica.

A AdC tem como principal missão assegurar a aplicação das regras de promoção e defesa da concorrência, com o objectivo de conseguir o funcionamento eficiente dos mercados, a boa afectação dos recursos e os interesses dos consumidores. A AdC é dotada de amplos poderes de regulamentação, de supervisão e sancionatórios aplicáveis às empresas públicas e privadas, em todos os sectores do comércio, indústria e serviços. Em particular, cabe à AdC investigar e decidir processos sancionatórios em matéria de práticas restrictivas da concorrência (como acordos do tipo cartel ou abusos de posição dominante), bem como aprovar ou proibir as operações de concentração de empresas que sejam sujeitas a notificação prévia. Em Setembro do mesmo ano, Emanuel Barbosa, antigo deputado do MpD, é nomeado presidente da agência. O responsável dá ao Expresso das Ilhas a primeira entrevista desde que assumiu o cargo.

É a mais jovem das agências reguladoras, ainda está na fase das dores de crescimento?

Sim, mas fazendo um percurso de superação que nos tem deixado orgulhosos. Sabíamos ao que vínhamos e estávamos cientes de que a fase de instalação de uma instituição, como a AdC, encerra bastante complexidade e quase sempre acompanhadas de muitas dificuldades, a par, também, de desafios que exigem muita inspiração e transpiração.

A resposta às dificuldades tem sido muito trabalho, muita dedicação, bastante pró-actividade, muito planeamento e adopção de estratégias acertadas, plano de mitigação dos riscos, arte, engenho e assertividade e é esta a fórmula que encontramos para colocar o comboio nos carris, vencer a força do atrito e começar a rolar. Com mais ou menos dores a grande satisfação é que estamos a edificar algo que esperamos ser abraçado pelo povo cabo-verdiano e que o governo continue firme e convicto da sua importância para as empresas, para a economia, para o Estado e para os consumidores. O nosso Plano de Atividades para o ano económico de 2023, que foi elaborado, atempadamente, com muito profissionalismo e com uma visão institucional de projetar a AdC para que ganhasse, ab initio, notoriedade, respeitabilidade tanto ao nível nacional, como internacional. Com certeza, que terá efeitos positivos na vida das pessoas.

Quando tomou posse, falou na necessidade da criação de uma cultura de concorrência entre os agentes económicos e consumidores em Cabo Verde. Por que não existia ainda essa cultura? E como espera criá-la?

Sim, de facto, fiz essa referência porque creio que o Estado e os agentes económicos precisam de adoptar de forma permanente, consistente e pró-activa uma cultura de concorrência para que nas suas decisões e opções estejam sempre presentes a promoção do mérito, da inovação e da eficiência. A instalação dessa cultura passa por fazer com que sejam apropriados, primeiro pelo Estado e a seguir pelos cidadãos e pelas empresas das vantagens e dos benefícios da sã concorrência. Em contraposição, devem ter presentes as desvantagens e os malefícios da violação das regras jurídicas da concorrência e, ainda, como actuar quando se detectam descaminhos quanto à observância dessas regras. A AdC tem a responsabilidade de naturalizar o cumprimento das normas da concorrência e incutir nas empresas esta cultura de tal forma que a observância das leis da concorrência ocorra de forma pró-activa por parte das empresas, isto é, através de instrumentos internos de compliance. Esta naturalização passa por várias dimensões de actuação subsidiárias e complementares e, obviamente, que uma dessas dimensões é a advocacy para a devida sensibilização dos stakeholders. A este propósito, devemos informar que, em parceria com a Autoridade Regional da Concorrência da CEDEAO (ARCC), realizámos, em tão curto período, duas ações de sensibilização que serviram para dar a conhecer a existência da ARCC e da AdC e disseminar as respectivas atribuições e competências e como podem ser denunciadas as práticas restritivas da concorrência.

Apesar de ser recente, já houve medidas para combater práticas anticompetitivas no mercado? Quais considera prioritárias?

Ainda, digamos, que é cedo para desenhar e implementar medidas substantivas, ademais, qualquer medida deve resultar de estudos de mercado para que a atuação da AdC possa ter uma sustentação científica e possa ser credível e criar um ambiente que permita estabelecer uma relação de confiança com os stakeholders. Ainda assim, já tivemos e estamos a ter algumas intervenções, designadamente, por motu proprio, analisamos a operação de fusão das empresas do grupo Cabo Verde Telecom que culminou com a nossa “no objection” e permitiu à empresa, há poucos dias, fechar esta operação com a chancela da AdC, que cremos ser um selo de garantia no respeito pelas regras da concorrência. Também, na sequência da apresentação de uma participação por parte de uma empresa nacional, realizámos uma avaliação jusconcorrencial que resultou na decisão de abrir um processo para acompanhamento e análise quanto à eventual existência de um acordo de compra em conjunto num sector muito sensível. Outrossim, estamos na fase da avaliação jusconcorrencial de mais outras duas denúncias. E, por último, temos um pedido de colaboração da Autoridade Regional da Concorrência da CEDEAO (ARCC) que, na sequência de uma queixa apresentada por um empresário nacional, solicitou a nossa colaboração que prontamente respondemos e estamos a conduzir os interrogatórios e a recolher informações adicionais para produzir um relatório final que será encaminhado à ARCC. Portanto, vê-se que existe demanda e estamos a preparar-nos para responder a todas as solicitações e não defraudar quem procura os nossos serviços.

Como é que a Autoridade da Concorrência avalia a concentração de mercado e quais os critérios para aprovar ou reprovar fusões e aquisições de empresas?

Quando se analisam fusões e aquisições, busca-se assegurar, prima facie, que os mercados funcionem de maneira eficiente. Avaliamos, essencialmente, se certas operações não são propensas à criação de práticas anticompetitivas. Por exemplo, se não conduzem ao abuso de posição dominante, em que a competição fica distorcida ou suprimida, prejudicando a concorrência, as empresas e os consumidores. A avaliação é realizada com base em critérios objectivos que decorrem da lei e que estão dimensionados para o mercado nacional. Em alguns sectores chaves da nossa economia prevalece, de facto, estruturas de mercado do tipo monopólio e oligopólio o que acarreta uma redobrada atenção da AdC para evitar, por exemplo, o que é chamado de “práticas de imposição ou de exploração” que sujeita o consumidor às condições e preços de monopólio bastante mais gravosos que os preços competitivos. Como é evidente, não podemos deixar de ter em conta a exiguidade e outras especificidades do perfil do nosso mercado que pode conduzir ao chamado monopólio natural.

Como é que a Autoridade da Concorrência monitoriza a conduta das empresas para garantir a continuidade da concorrência no mercado?

Estando vigilante ao que acontece no mercado. Estamos a trabalhar na criação de capacidade técnica e logística que nos permitirá no futuro proceder ao acompanhamento apertado e permanente do mercado para podermos com agilidade detectar eventuais casos de práticas de Colusão como Formação de Cartéis e Acordos Horizontais, No Poach (acordo de não-contratação), Hub-and-spoke (acordo do preço de venda ao público feita de forma indirecta), Acordos Verticais, etc. Vamos contratar e capacitar recursos humanos, assim como iremos adquirir softwares especializados para este fim. Vamos investir na realização de estudos de mercado e, ainda, actuaremos na sensibilização quanto à importância de se denunciar as práticas restritivas e, para o efeito, criaremos canais e mecanismos diversos para este propósito e incentivaremos a prática da denúncia através da implementação de um Programa de Clemência.

De que forma a Autoridade da Concorrência promove a conscientização sobre as leis antitruste e incentiva a concorrência saudável entre as empresas?

Sobretudo, através de sessões de advocacy e sensibilização junto de todos os stakeholders, no sentido de lhes dar a conhecer os benefícios da sã concorrência e o que podem fazer em caso do seu não cumprimento, por exemplo, denunciando situações identificadas como práticas restritivas verticais e horizontais. Nesta empreitada, esperamos contar, particularmente, com a colaboração da comunicação social e da academia como forma de investir nas próximas gerações de decisores públicos, empresários e consumidores, das associações tanto empresariais, como dos consumidores. Neste processo de sensibilização, serão envolvidos todos os destinatários da política da concorrência.

Quais são os desafios enfrentados pela Autoridade da Concorrência para detectar práticas anticompetitivas em sectores específicos, como as telecomunicações, a energia ou a alimentação?

A AdC só se pronunciará sobre a existência de práticas que falseiem ou distorçam o funcionamento dos mercados, tanto nos sectores referenciados na sua pergunta como noutros quando tenha elementos concretos para o efeito. Esta atitude decorre das responsabilidades acrescidas da AdC que nos recomendam prudência e muita responsabilidade. Assim, o bom senso aconselha-nos tão somente a adiantar que estamos a criar as condições para que a AdC possa responder com prontidão, assertividade e competência aos desafios que se lhe colocam num mercado cada vez mais complexo a fim de cumprir de forma qualificada com a missão que lhe está reservada no ordenamento jurídico cabo-verdiano e para que possa ser uma guardiã implacável do bem público, que é a Concorrência, e posicionar-se como uma instituição promotora do desenvolvimento económico do país. Para o efeito, faremos valer todas as prerrogativas legais, mormente as inspectivas e sancionatórias. Perceções podem existir, e somos possuidores de algumas perceções do que pode estar a ocorrer em alguns sectores da economia, mas terão de ser confirmadas com elementos de prova para que a AdC possa credibilizar as suas actuações e aqui devemos recordar que as decisões da AdC são sempre passíveis de recurso junto dos tribunais, o que implica um trabalho sério da nossa parte, sob pena de sermos desconstruídos e descredibilizados na esfera judicial e aos olhos da sociedade cabo-verdiana. Temos de zelar pela nossa reputação!

Quais são as políticas e programas já implementados pela Autoridade da Concorrência para estimular a entrada de novas empresas no mercado e garantir a diversidade de concorrentes?

A AdC deve aferir se existem barreiras à entrada de novas empresas, particularmente em sectores específicos que sejam fundamentais para a actividade económica nacional para estimular a competitividade no mercado e melhorar a panóplia de escolha dos consumidores e empresas. A referida aferição, em regra, passa por uma análise aprofundada de determinadas leis para avaliar se a própria legislação não constitui uma barreira à entrada das empresas no mercado. Mas, também, quase sempre implica a realização de inquéritos e estudos de mercado. Havendo situações que configurem barreiras desnecessárias à entrada de novas empresas, isso pode dar lugar, por exemplo, à produção de recomendações para, numa lógica de colaboração, ajudar o decisor público a implementar as melhores políticas neste quesito. Porém, são precisos alguns recursos, nomeadamente, precisamos de tempo, e é de bom-tom recordar que a AdC existe, de jure, já há algum tempo, todavia, só começou, efectivamente, a funcionar em finais de Dezembro de 2022, isto é, tem, de facto, sensivelmente, seis meses de existência.

Como espera que a política de concorrência influencie o ambiente de inovação na economia cabo-verdiana?

Há aqui uma questão central a que a AdC vai estar atenta, atuando, com certeza, em defesa dos direitos dos consumidores nos termos da lei e no quadro dos seus Estatutos. Pois, as empresas não podem ter uma atitude passiva relativamente às suas ineficiências e perdas porque naturalizaram que podem, confortável e eternamente, repassar o resultado das suas ineficiências para os consumidores finais porque operam em sectores cuja estrutura do mercado é similar à de um oligopólio ou de um monopólio. Isto não é sustentável e não deve continuar! Os consumidores têm de pagar estritamente pelo que consomem e não pelas ineficiências das empresas e, quiçá, do mau desempenho dos seus gestores. Se assim não for, estaremos artificialmente a manter no mercado empresas que não acrescentam valor à nossa economia.

A política da concorrência tem de funcionar como um dos pilares essenciais para o incremento da competitividade da nossa economia. Logo, as empresas, para se adaptarem e se manterem neste ambiente altamente competitivo, terão de aumentar a sua produtividade, terão de responder de forma mais rápida às necessidades do mercado, terão de atender melhor às ambições dos consumidores, terão de fornecer bens ajustados à procura, terão de alcançar uma afectação eficiente dos seus recursos, terão de trabalhar na criação de produtos e serviços inovadores e tudo isso vai, evidentemente, desembocar na necessidade constante de perseguirem a inovação e a investigação. É preciso incentivar as nossas empresas a pensarem fora da caixa e a serem disruptivas. Devem estabelecer parcerias com o mundo académico para promover a investigação, designadamente através de pesquisa colaborativa para o desenvolvimento de novos produtos, novos processos e novas tecnologias e para recolherem insights valiosos provenientes dos investigadores académicos.

De que forma a política de concorrência pode equilibrar a proteção dos interesses dos consumidores e a promoção da inovação e do crescimento económico?

Antes de responder à sua pergunta, permita-me clarificar que a competência da AdC, neste quesito, não é tão-somente indirecta, através das políticas da concorrência, mas, também, directa e decorre da lei na qual está plasmada que incumbe à AdC a adequada promoção e defesa dos serviços de interesse geral e da proteção dos direitos e interesses dos consumidores, pois, acreditamos que este sublinhado é importante. Respondendo agora à sua pergunta, devemos fazer notar que, quando as empresas competem num mercado, respeitando as regras da concorrência, tendem a oferecer melhores produtos e serviços para a satisfação dos clientes, o que implica uma permanente inovação e optimização dos processos e procedimentos internos. Estamos a falar na perseguição da eficiência que conduz, necessariamente, à inovação, sob o risco de ficar para trás e desaparecer do mercado. Essa realidade competitiva resulta em benefícios significativos para os consumidores, tais como maior qualidade, preços mais baixos e mais opções de escolha. Mas, também reflecte no crescimento económico. Ao incentivar a inovação, estamos a impulsionar o crescimento económico, uma vez que as empresas quando se esforçam por obter vantagem sobre os seus concorrentes investem em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para criar soluções exclusivas e de alto valor que quase sempre geram externalidades em outros sectores da economia e sem esquecermos que o avanço tecnológico estimula o aumento da produtividade, facilitando novas indústrias e oportunidades de emprego. Por outro lado, coloca as empresas melhor preparadas para competirem no mercado global, facilitando a internacionalização das empresas nacionais e da nossa economia. Concluindo, a concorrência é fundamental tanto para os consumidores como, também, para as empresas e estimula o crescimento económico, estimula a inovação, aumenta a eficiência das empresas e tende a manter os preços dentro de limites considerados justos e força o mercado a oferecer melhores produtos e serviços.

Como é que a Autoridade da Concorrência interage com os outros órgãos reguladores para promover uma actuação conjunta na proteção da concorrência?

Primeiro, devemos frisar que a colaboração entre a AdC e as reguladoras é uma imposição legal. Pois, as Autoridades Reguladoras, quer sectoriais, quer multissectoriais, estão, nos termos da lei, obrigadas a responder prontamente às solicitações da AdC, prestando-lhe a devida colaboração ou informações necessárias para o bom desempenho das suas atribuições. Igualmente, essas autoridades estão vinculadas ao dever de comunicar imediatamente à AdC todas as práticas restritivas da concorrência de que tenham conhecimento no desempenho das suas atribuições. Todavia, da parte da AdC, pretendemos que a articulação com as autoridades reguladoras extravase a dimensão legalista e ganhe forma consubstanciada em relações efectivas de cooperação e colaboração institucional para a construção de um ecossistema da concorrência e da regulação que seja catalisador para a internacionalização das empresas cabo-verdianas, para a criação de valor da nossa economia e desenvolvimento sustentável do país.

Foi com este entendimento que desencadeámos, desde a tomada de posse do Conselho de Administração da AdC, um conjunto de encontros bilaterais com várias agências reguladoras.

Estamos crentes de podermos criar um ambiente favorável à promoção de uma actuação conjunta na proteção da concorrência, respeitando as competências e atribuições de cada uma, com as agências reguladoras a assumir uma actuação predominantemente de análise prospectiva e imposição de obrigações ex-ante, deixando para a AdC, que actua de forma transversal sobre todos os sectores da economia, uma atuação ex-post em defesa do bem público – a Concorrência.

Quais são as perspectivas para o futuro da actuação da Autoridade da Concorrência e quais os principais desafios a ser enfrentados para garantir a concorrência justa e eficiente no mercado?

Ora bem, pelas respostas às outras questões, creio que quanto às perspectivas de actuação resta-nos somente acrescentar que pretendemos desenvolver um forte trabalho pedagógico de sensibilização, à montante, destinado a sociedade em geral, mas com foco especial em alguns segmentos tais como empresários, juristas, magistrados, investigadores académicos, etc. O desígnio é fazer com que a AdC seja percepcionada como parceira e não como “polícia”. Se conseguirmos este desiderato será um sinal importante de que estamos a cumprir bem com o nosso papel, que a mensagem está a passar, e que estamos a ser bem compreendidos pelos stakeholders. No que tange aos desafios, tendo em conta todo o trabalho de casa que estamos a realizar em termos de planeamento, produção de instrumentos de gestão, de estabelecimento de relação de cooperação com instituições congéneres internacionais, de integração nas redes internacionais da concorrência, de apropriação de melhores práticas internacionais, etc., contamos que o maior a ser enfrentado será o de mobilizar os recursos financeiros necessários para a materialização da AdC com as capacidades e dignidade desejadas e merecidas. Estamos crentes que vamos conseguir.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1133 de 16 de Agosto de 2023. 

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Autoria:Jorge Montezinho,20 ago 2023 6:42

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  20 ago 2023 16:07

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