"Não há condições, nem para comprar comida. Tenho dificuldade em fazer muita coisa que fazia antes", disse à Lusa um dos pouco trabalhadores que aceitaram falar, sob anonimato, para preservar as identidades.
Sindicatos e autoridades laborais contactados pela Lusa não deram informação sobre quantos dos 210 mantêm o vínculo à empresa ou, desistindo de direitos por antiguidade, preferiram procurar outros empregos.
A Atunlo foi inaugurada em 2015 como um investimento europeu de referência para colocar o arquipélago na linha da frente das exportações de pescado.
Este ano, as actividades foram suspensas em Fevereiro e os trabalhadores colocados em 'layoff', a receber metade do salário, num processo mediado pelas autoridades laborais e sindicatos.
Em Maio, a Atunlo desencadeou um processo de falência em Espanha, onde já tinha começado a fazer despedimentos, com problemas na empresa mãe desde 2023.
"Aqui, a situação está cada vez pior, porque eles não estão a pagar-nos", contou um dos trabalhadores, acrescentando que, mesmo assim, a empresa pede para cumprirem algumas tarefas nas instalações.
Alguns cumprem, mesmo com sacrifício: "Como eles não estão a pagar, já não tenho dinheiro para levar a comida para o trabalho", referiu.
Com um salário base de 15.000 escudos mensais, os trabalhadores colocados em casa ficaram a receber metade do salário.
A suspensão devia ter durado alguns meses, mas continua a arrastar-se, sem fim à vista, e o valor foi novamente dividido a meio, chegando com atraso, relataram à Lusa.
"Chega o fim de mês, eles não dizem nada. O combinado era pagar-nos a metade desse valor e agora estão a dividir, pagam apenas 3.500 escudos", lamentou, porque não tem sido suficiente para comprar alimentação e sustentar uma filha menor – vale o emprego da esposa.
"Não vou ficar à espera deles”, referiu à Lusa.
“Tenho contrato [com a Atunlo] e não posso assinar com outra empresa”, mas “não posso ir ao trabalho, para lhes agradar, e continuar com fome ", apontou, preso no dilema sobre o que fazer, situação que disse ser comum a outros colegas, numa altura em que já há pouca esperança em ver a empresa reabrir portas.
Outro colega, na mesma situação, afirmou que tenta "sobreviver" desde Fevereiro.
Já desistiu de lutar pelos direitos associados ao vínculo laboral e rescindiu contrato com a empresa, que, segundo contou, lhe pedia trabalho, mas sem pagar salário.
"Querem que trabalhemos, mas não há dinheiro. Já não espero mais nada. Eles não dão luz verde, nenhuma decisão, não acho que vão abrir", apontou ainda.
O coordenador do Sindicato da Indústria Geral, Alimentação, Construção Civil e Serviços (Siacsa), Heidi Ganeto, confirmou à Lusa as irregularidades nos pagamentos aos trabalhadores, referindo que a situação já foi relatada à Inspecção Geral de Trabalho.
"É claro que o sindicato vê isto como muito duro para os trabalhadores, mas, infelizmente, tudo está enquadrado no artigo 198 do código laboral, não podemos fazer nada", apontou.
O artigo prevê que um empregador pode “suspender a prestação de trabalho de todos ou alguns trabalhadores, até 120 dias, com fundamento em dificuldades conjunturais” ou outras, acrescentando que a duração máxima da suspensão pode ser ajustada por acordo entre as partes – no caso da Atunlo, a última prorrogação vai até 23 de Outubro.
A Lusa tentou obter informações adicionais junto da Atunlo e da Inspecção-Geral de Trabalho, mas sem resultados.
A situação da Atunlo foi abordada durante uma visita de Jose Manuel Albares, ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, a Cabo Verde, em Junho.
“Abordámos [o assunto] num contexto amplo que é este do desenvolvimento económico e investimento de Espanha, que é benéfico para os dois países. Há grande interesse das nossas empresas”, referiu.
“Às vezes surgem situações concretas que há que resolver e, desde logo, o Governo de Cabo Verde tem a melhor vontade de o fazer”, acrescentou Albares, sem mais detalhes.
O complexo de processamento da Atunlo e a fábrica de conservas da Frescomar (atum, melva e cavala), fábricas parceiras no Mindelo, São Vicente, bem como as conservas Sucla, na ilha de São Nicolau, formam o sector conserveiro de Cabo Verde.
O peixe enlatado e congelado representa mais de dois terços das exportações de mercadorias de Cabo Verde, dirigidos à União Europeia (UE), sendo Espanha o principal comprador.
Ainda assim, no quadro geral, representam apenas um décimo daquilo que Cabo Verde exporta em serviços: turismo, viagens e actividades associadas são o motor do qual depende quase por inteiro a economia do arquipélago.