A desigualdade é uma escolha política

PorJorge Montezinho,7 dez 2025 9:31

É um relatório histórico, publicado na última reunião do G20, na África do Sul, e liderado pelo Prémio Nobel Joseph Stiglitz, e faz soar o alarme sobre a "emergência da desigualdade". A boa notícia é que apesar de ser uma opção, a desigualdade não é inevitável e pode ser revertida.

Muito era falado, outro tanto era percepcionado, mas finalmente há dados concretos sobre a desigualdade global, números colectados e trabalhados pelo “Comité Extraordinário de Especialistas Independentes sobre Desigualdade Global” – criado pelo Presidente Cyril Ramaphosa para a Presidência sul-africana do G20.

Como explicou Ramaphosa: “Este relatório, que serve como um plano para uma maior igualdade, apoia o objetivo da Presidência sul-africana do G20 de colocar a desigualdade na agenda internacional. A desigualdade é uma traição à dignidade das pessoas, um obstáculo ao crescimento inclusivo e uma ameaça à própria democracia”.

Já segundo Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia e líder do projecto: “As evidências disponíveis sobre a desigualdade devem preocupar os líderes de todo o mundo. O mundo sabe que enfrentamos uma emergência climática; é hora de reconhecermos que também enfrentamos uma emergência de desigualdade. A desigualdade não é apenas injusta e prejudicial à coesão social – é um problema também para a economia e para a política. O comité acredita firmemente que alguns dos piores efeitos da desigualdade afetam a democracia” – segundo o relatório, países com alta desigualdade têm sete vezes mais probabilidade de sofrer declínio democrático do que países mais igualitários.

Como se lê no documento, a desigualdade é uma das preocupações mais urgentes do mundo atual, gerando muitos outros problemas nas economias, nas sociedades, nas políticas e no ambiente. Torna a vida das pessoas mais frágil, levando a perceções de injustiça que geram frustração e ressentimento. Isto, por sua vez, mina a coesão social e política, corroendo a confiança dos cidadãos nas autoridades e nas instituições. As consequências são a instabilidade política, a diminuição da confiança na democracia, o aumento dos conflitos e o menor interesse pela cooperação internacional.

No entanto, e estas são as boas notícias, a desigualdade não é um dado adquirido; combatê-la é necessário e possível. “A desigualdade resulta de escolhas políticas que reflectem atitudes éticas e morais, bem como compensações económicas”. Ou seja, não é apenas uma questão de preocupação para os países individuais, mas uma preocupação global.

_______________________________________________________

Alguns dados sobre a desigualdade

  • A nível nacional, 83% dos países apresentam uma elevada desigualdade de rendimentos. Estes países representam 90% da população mundial.
  • Globalmente, a desigualdade de rendimentos entre todos os indivíduos do mundo diminuiu desde 2000, em grande parte devido ao desenvolvimento económico da China. No entanto, mantém-se muito elevada, com um coeficiente de Gini de 0,61.
  • A desigualdade de riqueza é muito maior do que a desigualdade de rendimentos. Globalmente, entre 2000 e 2024, o 1% mais rico acumulou 41% de toda a nova riqueza, em contraste com apenas 1% acumulado pela metade mais pobre da humanidade.
  • O 1% mais rico viu a sua riqueza média aumentar 1,3 milhões de dólares desde 2000, enquanto alguém na metade mais pobre da humanidade viu a sua riqueza aumentar em média 585 dólares no mesmo período.
  • Uma em cada quatro pessoas no mundo (2,3 mil milhões) enfrenta insegurança alimentar moderada ou grave, ou seja, tem de saltar refeições regularmente, um aumento de 335 milhões desde 2019.

_______________________________________________________

Tendências da desigualdade

Ao lermos o relatório, vemos que a desigualdade entre países, em termos gerais, parece ter diminuído devido ao aumento do rendimento per capita em alguns países muito populosos, como a China e a Índia, o que reduziu um pouco a participação dos países de rendimento elevado no PIB global. Houve melhorias em alguns dos piores aspectos da pobreza e da privação, com centenas de milhões de pessoas a sair da pobreza, principalmente na China, mas também noutros locais. No entanto, a pandemia de COVID-19 travou esta tendência positiva em muitos países de baixo rendimento; os últimos anos testemunharam também um aumento absoluto da fome e da insegurança alimentar.

A desigualdade de riqueza é muito mais concentrada do que a desigualdade de rendimentos. Mesmo onde a desigualdade de rendimentos não aumentou (e, em alguns casos, até diminuiu), a desigualdade de riqueza continua elevada. Segundo a maioria dos indicadores, aumentou na maioria dos países nos últimos quarenta anos.

De particular preocupação tem sido o aumento global do rendimento e da riqueza no alto da escala, com os que estão no topo a receber uma parte crescente do rendimento e da riqueza nacionais, especialmente os mais ricos (os 0,01% mais ricos). Os dados do Laboratório Mundial da Desigualdade mostram que os 10% mais ricos da população mundial detêm 54% do rendimento global total e 74% da riqueza global total.

Verificou-se também um enfraquecimento das classes médias em muitas partes do mundo, reflectido em rendimentos mais inseguros e vidas materiais precárias. Em alguns países, existem fortes indícios de um esvaziamento da classe média, o que poderá ter consequências significativas para a estabilidade económica e política.

Consequências da desigualdade

A desigualdade, particularmente nos seus extremos, acarreta muitos resultados negativos nas esferas económica, política e social, cada um interagindo de formas que exacerbam os efeitos adversos, refere o relatório.

Como mostra o documento, a falta de rendimentos tem efeitos adversos evidentes nas pessoas. Passam fome e podem receber cuidados de saúde inadequados; os seus filhos podem sofrer de subnutrição e não receber a educação necessária para atingir o seu potencial, o que contribui para os ciclos de pobreza e para a transmissão intergeracional da pobreza.

Existem também consequências adversas para o desempenho global da economia. Se grandes parcelas da população receberem educação, saúde ou nutrição inadequadas, não serão tão produtivas e toda a economia não terá o mesmo desempenho que teria noutras circunstâncias.

A riqueza pode minar a democracia porque aqueles com grande riqueza podem ter uma influência desproporcional na economia e na política. As desigualdades económicas tendem a traduzir-se em desigualdades políticas, incluindo, por exemplo, no acesso à justiça ou na participação no processo político.

As desigualdades globais prejudicam o desempenho económico global, pois produzem efeitos transfronteiriços. Os mais óbvios estão relacionados com o ambiente e a saúde pública. As emissões excessivas de carbono geradas pelo consumo desenfreado dos muito ricos em todo o mundo contribuem para as alterações climáticas, com efeitos adversos na economia global e no planeta. A privação de saúde num país pode permitir que os agentes patogénicos proliferem e sejam levados para outros locais, dando nos piores casos origem a uma pandemia.

Por mais significativas que sejam as consequências económicas, o Comité Extraordinário de Especialistas Independentes sobre Desigualdade Global concordou que os efeitos mais preocupantes podem ser sobre a política e a democracia. As desigualdades económicas traduzem-se normalmente em desigualdades políticas, embora a extensão dependa das regras políticas do jogo, por exemplo, a influência das contribuições políticas; o papel das portas giratórias; as regulamentações relativas à transparência e aos conflitos de interesses; e se e em que medida os muito ricos têm permissão para dominar os media tradicionais e as redes sociais.

Os efeitos na economia política têm repercussões, reforçando as desigualdades económicas devido à introdução de regras que favorecem os ricos e poderosos, mas prejudicam o desempenho económico nacional e global. Por exemplo, a desregulação financeira acompanhada pela remoção dos controlos de capitais levou à crise financeira de 2008, com efeitos de contágio para o mundo inteiro.

Além disso, muitos trabalhadores sentem-se cada vez mais descontentes com as condições económicas. Respondem a forças social e politicamente polarizadoras, incluindo marginalizar e excluir pessoas como os migrantes. Estas ações criam ameaças adicionais à democracia.

Como se chegou aqui

A arquitetura económica e jurídica internacional desenvolvida nas últimas décadas tem contribuído de forma significativa para a desigualdade dentro dos países e a nível global.

A globalização, em todas as suas dimensões, afectou a distribuição de rendimentos dentro e entre países. Estudos anteriores, por exemplo, enfatizaram que o comércio de bens era um substituto parcial da movimentação de mão-de-obra e de capitais, o que implicava que, em mercados competitivos dos países desenvolvidos, o rendimento dos trabalhadores seria reduzido, especialmente o dos trabalhadores menos qualificados, exacerbando as desigualdades no rendimento de mercado.

Estudos mais recentes reconheceram que a participação dos salários no rendimento nacional – particularmente para os trabalhadores menos qualificados – desceu em quase todos os países. Uma explicação é que um comércio mais integrado, uma maior mobilidade de capitais através das fronteiras e novas tecnologias utilizadas na produção reduziram o poder negocial dos trabalhadores menos qualificados em todo o mundo, afectando tanto os salários como as condições de trabalho. Uma maior variação salarial tem andado de mãos dadas com uma maior insegurança no emprego e informalidade para os trabalhadores na base da pirâmide salarial.

_______________________________________________________

O painel internacional sobre a desigualdade

Uma das principais conclusões do Comité é que os decisores políticos necessitam frequentemente de informação suficiente, fiável ou acessível sobre as tendências da desigualdade e os impactos das políticas propostas na desigualdade, em todas as suas dimensões. Por isso mesmo foi recomendado o estabelecimento de um novo organismo, um “Painel Internacional sobre a Desigualdade” (PID), para apoiar os governos e as agências multilaterais com avaliações e análises fiáveis sobre a desigualdade. Estas análises informariam e fortaleceriam a formulação de políticas.

image

“Tal como as alterações climáticas, as desigualdades desenfreadas e crescentes também representam uma grande ameaça para a comunidade global. É imperativo que tenhamos um melhor conhecimento sobre a sua evolução e como as mudanças políticas propostas podem atenuá-la — ou agravá-la”, diz o relatório.

_______________________________________________________

Políticas para combater a desigualdade

Segundo o relatório serão importantes alterações regulamentares, tais como políticas de contenção do poder excessivo das empresas, legislação sobre o salário mínimo, regulação de investimentos e actividades económicas para proteger o ambiente, etc. É reconhecido também o papel crucial desempenhado pela prestação pública para garantir o acesso universal a bens e serviços essenciais de boa qualidade (por exemplo, alimentação, habitação, cuidados de saúde, educação e segurança social) ao longo da vida das pessoas. Devido às desigualdades multidimensionais interseccionais, estas disposições devem garantir o acesso àqueles que são tipicamente excluídos ou marginalizados.

“Neste contexto”, lê-se no relatório, “observamos a concepção errada de que o sector privado é mais eficiente que o público. Isto contradiz as evidências de que os serviços públicos, em muitos casos e contextos, são necessários e superiores”.

Para o comité, o investimento público é essencial para atingir metas sociais e de desenvolvimento e para garantir uma transição energética justa. É também crucial que os países se concentrem mais na criação de empregos dignos com salários justos e proteções, e trabalhem para regular os mercados de trabalho de forma a garantir os direitos dos trabalhadores.

“Obviamente, maiores gastos públicos exigem também mais receitas. Como em muitos países os mais ricos pagam uma taxa de imposto mais baixa do que os restantes, é necessário haver uma mudança dos impostos indirectos regressivos (como o IVA) para uma tributação mais directa das pessoas ricas e das grandes empresas”, concluí o relatório.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1253 de 03 de Dezembro de 2025.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Jorge Montezinho,7 dez 2025 9:31

Editado porJorge Montezinho  em  7 dez 2025 20:19

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.