Pandemia catapulta importância da internet

PorSara Almeida,19 set 2020 8:53

A pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 veio alterar quase tudo na vida das pessoas incluindo a forma como lidamos com a internet. Em período de confinamento para prevenção das infecções, esta tornou-se, em grande escala, uma espécie de “tábua de salvação” para o convívio à distância, o trabalho, a educação, a procura de informação, o comércio, etc…. De uma coisa não parece haver dúvidas: a “nova normalidade” é muito mais digital e cada vez mais as operadoras do sector têm um papel fundamental na sociedade. Mas o que mudou ao certo?

O piso da Unitel T+, em Chã de Areia (Praia) onde há poucos meses trabalhavam mais 60 pessoas está hoje praticamente vazio. Por altura do estado de emergência, que começou a 29 de Março e na Praia se prolongou por dois meses, quase toda a gente foi colocada a trabalhar em casa, em regime de tele-trabalho e a tendência organizacional impulsionada pela pandemia da COVID-19, mantém-se.

“Não foi fácil, mas é positivo porque mostra que há outras formas de se adaptar em termos organizacionais que podem ajudar o país”, diz Nuno Levy, Director Comercial da Unitel T+.

Um cenário semelhante ocorreu (e ainda ocorre) em várias empresas públicas e privadas, dos mais variados ramos, onde o tele-trabalho, que até agora era um regime previsto na lei, mas de uso residual, foi a solução.

“A pandemia da COVID-19 veio mudar muita coisa. Trouxe como é óbvio muitos problemas, mas veio também chamar a nossa atenção para as grandes potencialidades das tecnologias de informação”, aponta Isaías Barreto da Rosa, PCA da Agência Reguladora Multissectorial da Economia (ARME) e especialista em TIC, que também destaca o trabalho remoto como uma das grandes mudanças que a pandemia trouxe. E está a ser, no seu entender, uma mudança positiva.

“Acho que este é um grande aprendizado e acredito que essa dinâmica vai continuar fortemente no futuro”, defende.

Outros fenómenos

Ao fenómeno do tele-trabalho, juntou-se a corrida às TIC na educação, agora imprescindíveis para que os alunos possam prosseguir currículos escolares, mesmo com as escolas fechadas.

Para trabalhadores, alunos, enfim, pessoas em casa, foi a internet que permitiu manter alguma normalidade, incluindo o contacto social, inato, mas que com o distanciamento imposto passou a ser essencialmente realizado sob outro formato. “Desmaterializado”.

Por todo mundo, disparou o uso de aplicativos para vídeo conferências, para diversos fins, especialmente aqueles que permitem a participação de várias pessoas. O caso mais paradigmático talvez seja, entretanto, o da Zoom, que cresceu cerca de 19 vezes em três meses. Em Março, a plataforma teve mais de 200 milhões de utilizadores diários, segundo o presidente executivo, Eric Yuan, contra os cerca de 10 milhões de Dezembro.

Não havendo dados concretos sobre Cabo Verde, o fenómeno destas plataformas deverá ser semelhante (à escala, claro).

“Actualmente, a comunicação entre as pessoas passou a ser feita maioritariamente através de dados”, aponta José Luís Barros, Director Geral da CVMultimédia (braço da CVTelecom que lida com a internet).

E ainda outro fenómeno dos últimos meses, impulsionado pela pandemia, foi o “aumento exponencial do comércio electrónico” a nível mundial, e também cá.

Lá fora, enquanto muitas empresas enviavam os trabalhadores para lay-off, líderes da área, como a Amazon reforçavam as equipas face ao boom de pedidos. Em Cabo Verde, várias empresas da área viram o negócio crescer, novas empresas surgiram e mesmo projectos que já estavam em processo de criação, foram acelerados e implementados com mais rapidez para dar resposta à procura online. Mercearias e outros vendedores de lojas alimentares também correram para o digital – e às entregas ao domicílio - para ganhar novos clientes e fidelizar os antigos.

“Hoje temos uma panóplia vastíssima de serviços que nos permitem adquirir produtos de primeira necessidade, inclusive frutas, através da internet. Podemos ‘ir’ ao mercado municipal da Praia, através da internet, portanto eu diria que a pandemia despertou ainda mais a atenção das pessoas para a potencialidade da internet nos mais diversos campos”, reforça o PCA da ARME.

Assim, é hoje consensual que, tal como a História das crises da humanidade nos mostra, a pandemia causada pelo novo coronavírus veio adiantar o futuro, transformando o uso da internet na ‘coisa mais normal do mundo’…

Pandemia mudou padrões de consumo em Cabo Verde

Em Cabo Verde, o acesso à internet é feito sobretudo através do telemóvel. “Os dados apresentados pelo regulador relativos ao 2º trimestre de 2020, indicam que 89% dos clientes que acederam à internet, fizeram-no através de dispositivos móvel. Essa é uma tendência mundial, que se deve a alguns fatores, nomeadamente a mobilidade do serviço, o controlo dos gastos individuais, o preço dos equipamentos e o tipo de conteúdo mais procurado na internet”, destaca José Luís Barros, da CVMultimédia. Quanto ao conteúdo, de acordo com os dados do INE, 90% dos internautas cabo-verdianos acedem principalmente para utilizarem as redes sociais.

Com a pandemia, nas duas operadoras, aumentou o acesso dos cabo-verdianos à net, via telemóvel. Concomitantemente, uma vez que devido ao confinamento as pessoas estiveram mais tempo em casa, houve também um aumento em casa e a “internet fixa passou a ser mais valorizada.”

“Havia uma tendência de crescimento na procura desde o 2º trimestre de 2019, que se acentuou no 2º trimestre de 2020, período a seguir à Declaração do estado de emergência”, refere o responsável da CVMúltimédia, citando “um aumento do parque de clientes da internet fixa de 8% em relação ao trimestre anterior e 19% face ao período homólogo do ano anterior.”

Mais tempo em casa, aulas em plataformas vídeo, jogos e streaming (a Netflix, por exemplo, também cresceu imenso em todo o mundo, e certamente Cabo Verde não é excepção), tudo isto, para além das redes sociais contribuiram então para o aumento considerável de consumo e essa demanda da fixa.

Se houve mudanças na forma de acesso, também é de destacar, os horários do mesmo, principalmente durante o estado de Emergência.

“Tínhamos uma rotina de consumo bem identificada, com horas de ponta”, conta Nuno Levy, da Unitel T+. Às 8h havia um pico, com a chegada as pessoas ao trabalho, que diminuía durante o dia. Depois, à noite, já em casa, o consumo voltava a subir, com destaque para o uso das redes sociais. “Essa tendência desapareceu completamente. As pessoas começaram a consumir muito mais banda e muito mais horas, até as tantas da madrugada”, explana.

Mas o aumento da necessidade de volume de consumo de internet não trouxe aumento da facturação às operadores. Pelo contrário, houve perdas.

A começar pelo blackout turístico.

“Cabo Verde tinha um mercado interessantíssimo de turismo, que é um mercado que, digamos, nem é preciso correr atrás. O turista liga o seu telefone e consome. Havia uma receita que em final de Março acabou”, lamenta Nuno Levy.

E esta era uma receita considerável. Basta relembrar que nualmente afluíam ao país “700 ou 800 mil turistas, o que é mais do que a população residente”.

Além disso, o lado empresarial: por todo o país, “deu-se o lockdown, e alguma empresas em apuros começaram a pedir cancelamento de serviços, ou a redução/suspensão dos contratos. Tivemos, pois, duas grandes perdas: no roaming e o sector empresarial”. E a nível desta “retoma´, tudo continua muito incerto.

O aumento de pedidos das empresas para fornecer serviço internet aos seus colaboradores em tele-trabalho, também não compensou essa quebra.

E o cenário é comum a ambas as operadoras.

“Quer isso dizer que, o aumento da procura no segmento residencial, per si, não tem sido suficiente para compensar a queda na faturação do segmento empresarial, tendo em conta o seu peso na faturação global da empresa”, resume José Luís Barros.

Internet, um direito fundamental

Entretanto, “há já alguns anos que as Nações Unidas falam do acesso à internet como um direito humano fundamental”, como lembra Isaías Barreto da Rosa, mas nunca o tema esteve tão na ordem do dia como em tempos de pandemia.

O debate em Cabo Verde também já não é novo. Há algum tempo que se fala em “considerar o acesso aos serviços de telecomunicações”, nomeadamente o acesso à internet como um bem essencial à semelhança da água ou da eletricidade. E esse é, inclusive, um objectivo do governo cuja concretização começa a dar-se (ver entrevista).

“É uma questão importante: a de nós democratizarmos ou massificarmos o acesso à internet. E nesse aspecto eu diria que aqui em Cabo Verde temos estado a fazer progressos notórios na matéria”, considera o PCA da ARME. Um indicador disso mesmo é, conforme refere, a elevada taxa de penetração da internet no país: cerca de 80%, muito acima da média mundial que se situa entre os 60 a 62%.

Cabo Verde tem, no entender de Isaías Barreto da Rosa, um trabalho interessante feito, mas ainda um longo caminho a percorrer”.

“Precisamos de fazer os preços das linhas de acesso à internet ainda mais acessíveis e também disponíveis para todos. Neste quadro, todos nós, cada um no âmbito das suas responsabilidades, temos um papel importante a desempenhar”, No campo das responsabilidades específicas da reguladora, a ARME tem estado a trabalhar para garantir que haja um bom ambiente concorrencial, garante o presidente, “para que todos os players do sector tenham acesso ao mercado em condições concorrenciais e para que desta forma, em última instância, o próprio consumidor final possa vir a ter um produto com um preço mais acessível.”

Para o Director Geral da CVMultimédia, “hoje em dia, parece não haver dúvidas de que a internet é um bem essencial e com a digitalização das sociedades e da economia, será cada vez mais importante.”

Passos pré-pandémicos já tinham sido dados e José Luís Barros nega que os preços do consumidores possam ser, num panorama geral, considerados muito elevados. “Cabo Verde ocupa o 3º lugar no ranking de países Africanos com preço mais baixo de internet, quer seja fixa, quer seja móvel, de acordo com o Relatório sobre o preço dos serviços de telecomunicações, relativos ao ano 2019, divulgado pela União Internacional das Telecomunicações no passado mês de Junho”, justifica.

Já o Director comercial da Unitel T+, Nuno Levy, destaca que embora não haja dúvidas de que a internet deve ser considerada um bem internacional, antes é preciso olhar a cadeia de valor e outros aspectos.

“Não pode simplesmente impor o bem essencial onde o mercado está desequilibrado” que bem entende, critica. Antes de decretar, então, o bem essencial, “há a regular as infra-estruturas de fibra óptica e o preço de internet do grossista internacional e evitar o monopólio”, resume.

Desafios e custos

Se o novo mundo digital é uma oportunidade para os operadores, “que estão no centro desta revolução”, é tambem um desafio.

Desde já, por serem “os agentes encarregados de facilitar a conectividade de todo um ecossistema”, aponta José Luís Barros. A situação pandémica veio, aliás, mostrar como o “papel das telecomunicações está a ser fundamental para garantir o normal funcionamento desse ecossistema, contribuindo directamente para a atenuação da recessão económica, a nível global”.

À responsabilidade, junta-se o aumento substancial do tráfego, que também já se vinha a manifestar antes da pandemia, e que obriga a investimentos na rede, cibersegurança, maiores custos operacionais e de manutenção.

Na verdade, referem as duas operadoras, pela caracterísiticas geográficas e populacionais de Cabo Verde, os custos são enormes.

Ambos responsáveis, coincidentemente, apontam o exemplo do Senegal, um país plano, que necessita de menos antenas (e as antenas custam o mesmo que as usadas em Cabo Verde) e onde uma antena facilmente serve uma população de 1 milhão de utilizadores.

“Estamos a falar num custo por cada mega produzido, muito inferior ao produzido em Cabo Verde”, resume o Director Geral da CVMúltimédia.

Da parte da Unitel T+, Nuno Levy acrescenta o elevado preço de licenças, do espectro electromagnético, mas também o custo de energia. “Mais de 30% dos nossos custos são custos de energia”, diz. Havendo ainda locais que nem sequer têm corrente eléctrica, para manter a rede o custo torna-se ainda maior. “Temos várias antenas que funcionam 24h com geradores

Um outro problema, apontado pela empresa de capital privado é o preço da internet comprado ao grossista internacional e o facto, reitera, de todos os anéis da infra-estrutura de fibra nacional estarem “sob a chancela do monopólio da CV Telecom”.

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Futuro

O presente é incerto e o futuro também. Mas “a pandemia da COVID-19 trouxe alterações da nossa relação com a internet, e muitas dessas alterações vão continuar a existir numa dinâmica bastante forte mesmo no pós-pandemia”, considera Isaías Barreto da Rosa.

“O nosso futuro, nós acreditamos, é essa veia na digitalização do país. Sem dúvida esta crise acelerou a digitalização”, diz Nuno Levy da Unitel T+.

E “a crescente conectividade de Cabo Verde permite continuar a progressão no digital aproximando-o de países mais maduros digitalmente”, acredita por seu turno , José Luís Barros da CV Muiltimédia.

O que é certo é que não há regresso. A nova normalidade é digital.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 981 de 16 de Setembro de 2020.

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Autoria:Sara Almeida,19 set 2020 8:53

Editado pormaria Fortes  em  28 abr 2021 23:21

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